domingo, 6 de julho de 2014

Ah! Um guarda-chuva?





        Havia pequenas frestas de céu azul por entre as nuvens. Em outras ocasiões, o céu assim se fechando em cinza, lhe causaria grande aflição. No entanto, as pouquíssimas chuvas dos últimos três meses já haviam deixado fortes marcas de ressequimento na paisagem a ponto de qualquer gotejamento ser ansiado em profundo. Olhar aqueles verdes já em palha era lembrar que o tempo também lhe ia levando a juventude, que seu rosto, a cada dia, trazia um novo vinco, que a sequidão tinha algo de um amargo irreversível... Aquelas pesadas nuvens que se iam ajuntando eram alegria.

        De há muito a água que escorria vinha para solver outras poeiras e deixava-lhe a pele em sal. As nuvens agora acenavam com outro paladar, para curtir assim, como se bebesse o mais nobre vinho de castas especiais!

        Engraçado é que suas lembranças de chuva até então não lhe eram muito agradáveis.

        Era o temporal de quando ainda adolescente, que destelhara o barracão em que sua família morava. Da noite para o dia, o quase nada que havia, tudo perdido, e, na sequência, meses de dolorosa reconstrução marcando o cenário no qual pauperrimamente ela debutava.

        Era também o sonho romântico da jovem romântica que a habitava, o sonho nunca realizado de que um dia surgisse de algum além um moço que, em máximo êxtase de paixão por ela, andasse por marquises e rodopiasse em poças d’água a imitar Gene Kelly. Ela havia nascido para as agruras da vida, para os espinhos. Era forte, destemida, inteligente. Não lhe coube o cor-de-rosa delicado que a fizesse princesa aos olhos de um cavalheiro cuja alma estivesse banhada no mesmo romantismo que ela escondia até de si mesma.

        Era ainda a enchente que, impiedosa, devastaria sua casa, alguns anos depois, fazendo-a – em meio a filhos, fraldas e mamadeiras – agarrar-se a qualquer subterfúgio que lhe desse o direito de resgatar um pouco de sua memória. A lama na gaveta do criado-mudo tornando invisível e ilegível parte do que lhe era sagrado. Que se recuperassem, no mínimo, algumas fotos...

        Definitivamente, suas lembranças de chuva... não eram para ser lembradas. Apague-as à borracha a irreversibilidade do tempo! Ah, que nessas ocasiões o tempo é traste e vence a si próprio em crueldade! Não apaga.

        Mas, eis que o céu insiste em se mostrar agonizantemente lindo. Em soluços, de uma felicidade que não lhe era íntima, correu a fechar as janelas. E cantarolava, misturando sua voz ao som dos pingos que grossamente caíam:

“come on with the rain
have a smile on my face.
I'll walk down the lane
with a happy refrain
just singin’
singin’ in the rain”



2 comentários:

  1. A chuva nem sempre se porta como no filme "Serenata à chuva". Por vezes cai quando e onde não deve, causando tantos estragos...
    Um texto que contém uma história de vida.
    Beijo.

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  2. Texto maravilhoso. Bravo, Márcia!
    Um beijo.

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