Acervo pessoal
A mesa estava arrumada. Finalmente concluíra no horário as tarefas daquela manhã. Olhou mais uma vez, de relance, o céu. Uma pequena nesga entre a parede do sobrado e o muro da casa vizinha. Aquele tom de azul fazia-a sentir como se a vida lá fora zombasse do descolorido que ia pelo lado de dentro. Era um universo inteiro às gargalhadas transformando-a em truão ainda aprendiz, que faz rir muito mais pelo sem jeito das mãos inábeis que pela perícia exigida na atividade.
De qualquer forma, havia capricho na mesa posta. Faca à direita, garfo à esquerda. Quem repararia nisso? As filigranas da porcelana passariam despercebidas. Há muito que a delicadeza da louça é desnecessária. As cozinhas ganharam em colorido e praticidade. O que vai fácil ao lava-louças e ao micro-ondas...
Logo acima da mesa, na parede, o relógio em caixa de aço fosco denunciava sua pontualidade. De repente viu-se tomada pela angústia. Por que justo hoje o relógio decidira tornar-se seu cúmplice? Havia algo naquele céu sem nuvens que a puxava para fora mas, simultaneamente, fazia com ela se encolhesse toda, que emudecia qualquer reação de seu corpo debilitado, em ânsia de gritos, porém.
Estranhamente o cheiro derramado no ambiente era convidativo. Em alguns minutos a porta da sala se abriria e os passos acabariam na cozinha substituídos por bocas sequiosas e apetites vorazes. Dois quartos de hora depois todo o arranjo seria nada mais que vasilhame sujo sobre a pia. A rotina em derredor de si. E ela, torneira aberta, daria nova olhadela pela porta da cozinha, conferindo a cor do céu.
Gostara do fosco daquele relógio comprado após a instalação dos móveis planejados. Mas gostara de uma forma bem diferente de como gostara do aparelho de jantar, presente de um padrinho do casamento. O relógio parecera-lhe arrojado. Diferente dela. A porcelana representava a fragilidade, também diferente dela, acostumada à lide diária. Descobriu que a forma de gostar daquele azul que emoldurava as paredes para além de sua casa era outra. O céu era distância e liberdade.
Foi assim, querendo aquele céu, que entendeu o recado do relógio. Recolheu os talheres, devolvendo-os à gaveta. Uma a uma as louças iam caindo ao chão. Mentiria sobre um pequeno acidente - escorregara com todos os pratos nas mãos. Impossível salvá-los. Chorou lágrimas de alívio. Mal acabara de instalar-se no sofá, radiante, em frente à televisão, a porta da sala se abriu.