sexta-feira, 23 de julho de 2010

Para além, o céu!

     Acervo pessoal
    
A mesa estava arrumada. Finalmente concluíra no horário as tarefas daquela manhã. Olhou mais uma vez, de relance, o céu. Uma pequena nesga entre a parede do sobrado e o muro da casa vizinha. Aquele tom de azul fazia-a sentir como se a vida lá fora zombasse do descolorido que ia pelo lado de dentro. Era um universo inteiro às gargalhadas transformando-a em truão ainda aprendiz, que faz rir muito mais pelo sem jeito das mãos inábeis que pela perícia exigida na atividade.

De qualquer forma, havia capricho na mesa posta. Faca à direita, garfo à esquerda. Quem repararia nisso? As filigranas da porcelana passariam despercebidas. Há muito que a delicadeza da louça é desnecessária. As cozinhas ganharam em colorido e praticidade. O que vai fácil ao lava-louças e ao micro-ondas...

Logo acima da mesa, na parede, o relógio em caixa de aço fosco denunciava sua pontualidade. De repente viu-se tomada pela angústia. Por que justo hoje o relógio decidira tornar-se seu cúmplice? Havia algo naquele céu sem nuvens que a puxava para fora mas, simultaneamente, fazia com ela se encolhesse toda, que emudecia qualquer reação de seu corpo debilitado, em ânsia de gritos, porém.

Estranhamente o cheiro derramado no ambiente era convidativo. Em alguns minutos a porta da sala se abriria e os passos acabariam na cozinha substituídos por bocas sequiosas e apetites vorazes. Dois quartos de hora depois todo o arranjo seria nada mais que vasilhame sujo sobre a pia. A rotina em derredor de si. E ela, torneira aberta, daria nova olhadela pela porta da cozinha, conferindo a cor do céu.

Gostara do fosco daquele relógio comprado após a instalação dos móveis planejados. Mas gostara de uma forma bem diferente de como gostara do aparelho de jantar, presente de um padrinho do casamento. O relógio parecera-lhe arrojado. Diferente dela. A porcelana representava a fragilidade, também diferente dela, acostumada à lide diária. Descobriu que a forma de gostar daquele azul que emoldurava as paredes para além de sua casa era outra. O céu era distância e liberdade.

Foi assim, querendo aquele céu, que entendeu o recado do relógio. Recolheu os talheres, devolvendo-os à gaveta. Uma a uma as louças iam caindo ao chão. Mentiria sobre um pequeno acidente - escorregara com todos os pratos nas mãos. Impossível salvá-los. Chorou lágrimas de alívio. Mal acabara de instalar-se no sofá, radiante, em frente à televisão, a porta da sala se abriu.
    

domingo, 18 de julho de 2010

O dizer do silêncio

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(Este texto, publicado em mídia impressa em 2006, foi produzido "por encomenda" e é uma das minhas primeiras incursões na narrativa em primeira pessoa, ainda que nele seja forte o viés acadêmico.)


A única glória no mundo — ouvir-te.
Daniel Faria, in "Dos Líquidos"


Quieta, no meu silêncio de cada dia, vejo-me incumbida de uma árdua missão: falar sobre o silêncio.

Diz-se do silêncio como a ausência de som. Mas ele é bem mais que o cessar do barulho. Uma página como esta, carregada de palavras, de frases, está toda entrecortada pelo silêncio. Sim, os espaços brancos da página são pequenos silêncios que, se costurados, evidenciariam horas da mais absoluta mudez. Um silêncio poético!

Há silêncios que ecoam dolentes: os silêncios do não-dizer. As vozes ocultadas, quer tenham sido reprimidas pelas ideologias dominantes, quer tenham se calado propositadamente. Um calar-se que esconde-revela duas possibilidades: uma renúncia covarde à manifestação, que se traduz num pacto coletivo medíocre de falta de posicionamento na sociedade, ou uma forma de resistência passiva, que opõe a fórmula “ofereça a outra face” à fórmula “quem cala consente”.

O linguista John L. Austin (1911-1960) escreveu "Quando dizer é fazer", obra na qual propõe uma teoria dos atos da fala, defendendo, sob um ponto de vista pragmático, que, pela linguagem, se tem uma ação capaz de modificar a relação entre os interlocutores. Em outras palavras, o enunciado é performativo: ao proferir algo, o falante está realizando uma ação. É o que se pode observar em frases como “Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. É o que Austin chama de força ilocucionária, que não está presa somente ao vocabulário ou aos limites da estrutura sintática, mas também a fatores que dizem respeito às condições externas.

Mencionei essa teoria porque, ligando-a à ideia anterior, quero levantar uma questão: como analisar o silêncio do não-dizer, ou melhor, o dizer do silêncio? Não pretendo, porém, buscar respostas.

Francamente, falar sobre o silêncio para mim, neste momento, está sendo calar uma voz que queria mesmo era falar de pitangas. Aquelas que saboreei há um tempo atrás em companhia de alguém muito querido. Palavra alguma foi dita, entretanto os olhares gritavam ensurdecedores. Quanto de dizer – apesar do não dito – naquele pomar!
   

quinta-feira, 8 de julho de 2010

O poço dos desejos


Morava em um lugarzinho quando eu tinha 15 anos. Era bem deste jeito: na porta da sala daquela casinha havia uma cisterna. Acabamento rude, buraco cavado artesanalmente. Um sufoco para se descerem aquelas manilhas! Só lá no final do lote, um portãozinho, na cerca de bambu, acenava para a rua de terra. Antes dele, o varal cheio de roupas. Trabalho exaustivo do sarilho subindo baldes d’água até que as roupas alcançassem esse destino.

Eu sonhava com casas em que a porta da sala se abrisse para um jardim, um gramado, flores, rosas... e pedras decorativas. Eu sairia pisando um pé em cada pedra e chegaria ao portão. Minha mãe, quando eu era ainda mais criança, falava em festas de 15 anos. Cresci sem saber o que era o tal “debutar”. Palavra feia essa também, não?

Um dia apareceu lá minha fada madrinha, invisível até para mim. Fato é que a cisterna se transformou em poço dos desejos e o príncipe encantado segurou minha mão. Sentados diante da ausência de jardim, a querência nos olhos, a promessa silenciosa de amor eterno, daquele que prescinde do sapatinho de cristal.

Há muito já não lanço a corda ao poço nem ergo baldes pela força manual. Para as roupas, a máquina de lavar. Hoje, olho para a casa em que moro. O jardim é minúsculo, mas existe. A casa é fruto de trabalho árduo. Desculpe-me, leitor, se pensou “Príncipes encantados não existem. Está vendo? Ele não lhe deu um castelo.”, porque seu pensamento é muito menos real que minha fantasia. É que príncipes encantados não oferecem coisas concretas.

Os sonhos foram se transformando à medida que o avançar do tempo exigia a duplicação dos 15 anos. Um pé em cada pedra? Por vezes os dois pés em uma única pedra. Momentos até em que eram os pés sob as pedras. Nas madrugadas insones, entretanto, a água dos olhos são respingos da fonte dos desejos e, na superfície líquida, vê-se ainda o reflexo das mãos entrelaçadas.