quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

E o vento não levou...

 


Há muito ela perdera o hábito de telejornais. No jornal impresso que assinava, escolhia com cautela as seções para sua leitura. Interessavam-lhe, mais que as notícias, as resenhas de romances e de livros de filosofia e sociologia. Igualmente, faziam parte do seleto rol as tirinhas e as propagandas de lançamentos imobiliários. Nas primeiras, buscava subterfúgio para as agruras da rotina. Nas últimas, entrevia a possibilidade de uma casa que lhe prometesse bem mais que abrigo. Em tempo algum se debruçava sobre notas sangrentas e sensacionalistas. O horror que lhe causavam era já antídoto que a mantinha longe.

Por aqueles dias, no entanto, os jornais andavam intactos sobre a mesa de apoio da sala. Indiferente a eles, seu desejo se instalara em outro plano. Não granjeava palavras elaboradas, nem ideias avançadas, nem alimento para curtas risadas, muito menos esconderijos aconchegantes...

Seu desejo ganhara corpo, companhia para horas de êxtase que a faziam descobrir as pernas e se descobrir. Notícias e reportagens para quê, se aqueles momentos poderiam lhe valer toda uma existência?

Preparava-se com esmero para a chegada daquele homem: a veleidade espantava a prudência, a ansiedade derramava blush em suas faces. Era preciso fazer vento para dissipar o calor que a consumia. Ela não titubeava. Ligava com antecedência o ventilador de teto.

Naquele momento, portanto, havia, na sala, estendida sobre o sofá, a languidez de um casal que acabara de fazer amor e havia também a agitação de um ventilador de teto ligado. Coube a ele o gesto harmônico de unir repouso e movimento. Foi assim que a ergueu nos braços e a fez rodopiar.

Cuidado! O ventilador! A cena delineou-se em ambas as mentes. Ele estancou o movimento. Por breves segundos, fez cara de susto, para, em seguida, despencar em riso solto. Acusado de matar a amante! Já pensou? Decididamente, ele não queria ser manchete de jornal. Até porque ela não poderia lê-la...

Colocou-a no sofá sem perceber que ela vira sua morte nos olhos dele e que ela fora subitamente tomada pela vontade de ser cega para não ver o olhar que evocava certo presságio. Um dia ele a mataria, sim, de modo muito mais cruel. Iria matá-la dentro dele, no coração, na mente, nas lembranças. Ela sofreria sem que ninguém jamais soubesse. Essa tragédia não seria noticiada em jornal nenhum.

Contraditoriamente, também se deixou levar pelo riso. Talvez até preferisse as hélices do ventilador, mas ela o pouparia do escândalo. Sabia que nunca iria querer nem o mais mínimo dos males para ele.