segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Com [Simone] nome [Cândido] de amor

    
A loja é de CDs, DVDs e livros. Um pequeno livro em uma prateleira promete brindar-me com o significado e a origem dos nomes. Abro-o a esmo. Na página, leio: SIMONE – do hebraico – aquela que ouve. A bebida dessa fonte oculta não me deixa ébria. Simone não é decididamente “aquela que ouve”, pois que, no caso, quem ouve sou eu.

E ouço o que traduz perfeita parceria. Não nessa loja, mas em outra, de prazeres gratuitos. Meu amigo Tuca Zamagna (Desinformação Seletiva) presenteia-me com material belíssimo sobre Simone Guimarães e Cândidos, seu novo CD, que traz melodias e harmonias sofisticadas em voz que vem de Santa Rosa de Viterbo. Sim, ela, Simone, paulista de voz belíssima, junto a ele, Isaac Cândido, cantor e compositor cearense.

Deliciou-me, no material recebido, a música Com nome de amor*. Tanto vento... tanto verbo... (ai, e tanta dor inconjugável!) inspiraram-me a imaginar como noticiaria a turnê de lançamento do CD, que inclui shows em São Paulo (07/12), Ribeirão Preto (09/12), Brasília (15/12) e Rio de Janeiro (21 e 22/12).

Confesso, entretanto: a música embargou-me a imaginação. Agora sou apenas ouvidos. Mas estendo à visão o prazer do que me foi enviado. Eis Simone Guimarães pelas lentes de Romeu Antunes:




De resto, eu, que pouco sei sobre os mistérios da linguagem objetiva, deixo o convite aos amantes da boa música brasileira:

- para os shows (http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=163678),

- para mais informações sobre Simone (http://www.mpbnet.com.br/musicos/simone.guimaraes/index.html),

- para conferir um pouquinho mais dessa frutífera parceria (http://www.youtube.com/watch?v=bu3iVyCueZk).

(*) Essa música ficou "fora" do CD, mas está no vídeo citado acima.
    

sábado, 27 de novembro de 2010

O fecho



Sabe quando a mulher veste sutiã que tem fecho na frente e o abraço é tão apertado que solta o fecho – às vezes até quebra o fecho? Pois é, aconteceu comigo. Episódio que ficará registrado na memória pelo cômico da situação, em contraste com a ansiedade da expectativa. Sutiã vermelho, lindo, com renda, novo!

Sabe o que acontece quando se tem um sutiã vermelho, lindo, com renda, novo... e com o fecho quebrado? Meu Deus! Ainda existem armarinhos, lojas de aviamentos? Era assim que a gente chamava há alguns poucos anos, quando minha mãe era costureira bem procurada e as mulheres ainda tinham o costume maior de comprar tecidos em vez de roupas prontas.

Despi-me da sensualidade das curvas femininas realçadas pelos detalhes da lingerie. Voltei à infância das caixas de costura cheias de bugigangas e cores que seduziam o olhar da menina vaidosa. Chegou até o ouvido o eco da fala da mãe pedindo para correr à venda: um retrós de linha branca, 2 metros de elástico... Revivi a atração da intensa variedade de belas rendas, tirinhas de strass e lantejoulas, fitas de cetim, sutaches, passamanarias e sianinhas. No ímpeto do espírito artesão decidi consertar a peça.

Aproveitei o sábado e saí em busca do tal fecho. Não queria o prejuízo do sutiã novo sem uso. Vasculhei os cantinhos do centro da cidade, uma porta comercial mais tímida, sem vitrine, mas que vendesse o equipamento. Nada! Lãs, linhas, agulhas, botões, alfinetes. Porém, nenhum fecho delicado que se encaixasse na delicadeza do artefato.

Decepção. De propósito de arrebatamento fálico a investimento falido! Entretanto, com uma pontinha de esperança – precipitado ainda desfazer-me dela – aposentei a lingerie no fundo da gaveta. O desejo agora é tão somente de correr de volta para o abraço.
     

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Descer - Subir

    
Na minha visão extremamente ocidental, de saberes formais acumulados, digo subir para o norte e descer para o sul. Um motorista goiano conversa comigo, abala minhas certezas. Subir é pra Minas – altitude desenhada concretamente nas serras do percurso acidentado. Descer a gente desce é pros lados de Tocantins. E eu vou me apaixonando pelos poemas dos becos de Goiás. Aprendendo com Aninha o segredo dos doces sem açúcar.

Houve um tempo, adolescente desajeitada, um poetar inconsciente, preso à dificuldade de expressão oral e à necessidade mais premente de transformar as horas em pão... Nesse tempo, eu descia divagando com Manuel Bandeira do Capiberibe à Guanabara. "Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? — O que eu vejo é o beco".

Morri em várias noites lacrimejantes acreditando que o verso mais bonito da Literatura Brasileira fosse "a vida inteira que podia ter sido e que não foi". Mas, se fui moça de letras tristes, soprou-me recentemente um vento de través, da nuca para a menina dos olhos, que é possível amadurecer com outras cores. Apurar, no fruto, perfumes outros.

Agora, minha janela se abre para a Serra Dourada. Todas as leituras de minha vida costuram-se em um novo mapa-mundi. Azuis e verdes google são nada quando se trilham tempos e espaços reais por estradas que desconstroem a noção norte-sul.

Descer-subir. Agarro-me à fala do motorista. É a minha certeza neste momento. Eu, que ainda preciso tanto de certezas,... vejo-me diante de novo verso para chamar de o mais bonito da Literatura Brasileira: "tu encontrarás, sempre, no teu caminho, alguém para a lição de que precisas".


terça-feira, 9 de novembro de 2010

Dança




Aos sábados
ela ouve música clássica enquanto ele joga bola.
Tudo parece tão perfeito!
O que ninguém sabe
(e ela nunca vai contar)
é que num cantinho seu de tálamo e fantasia
a música muda de ritmo.
E, a cada vez que as pernas dele dançam
na bola, na grama, no lance fantástico,
ela também dança.
De corpo inteiro, de alma inteira
entrega total...
uma casa que não a sua
um outro alguém que não ele
um amor que transcende à música e ao futebol.
Tudo tão perfeito!

domingo, 3 de outubro de 2010

A dona da história

  
Porque li no decorrer desta semana um romance (autobiográfico?) de Salwa Al-Neimi, intitulado “A prova do mel” (Editora Objetiva, 2009), hoje vou despir minha crônica de quaisquer personagens e deixar fluir pensamentos próprios. Não me lembrem, portanto, daquela máxima que já repeti, de algum lugar, de 90% invenção e 10% mentira. Faço isso, a princípio talvez, movida pela similitude. O romance de Al-Neimi é considerado erótico. Eu própria já disse, por ocasião do lançamento de meu livro de poesia, que há em meus poemas uma grande dose de erotismo. Os leitores mais atentos decerto já o vislumbraram também em várias de minhas crônicas.

Mas trazer à tona esse tema em dia de eleição? Um amigo meu chamou Dilma de assexuada. No momento, devo confessar, a comparação foi inevitável, pois que Lula sempre me seduziu – e não só pelo seu discurso. Confesso ainda mais, sentindo o enrubescer das faces: quando vejo a imagem de Lula estampada em revista ou jornal (sim, impressa; na TV não), quando vejo, me dá uma vontade de homem com a barba por fazer, o contraste entre a pele áspera e a suavidade feminina...

Gosto de Dilma pela força, sem afeto, sem sensualidade, sem nenhuma ardência no rosto (por sinal, acho muito bom que seja assim). Não pretendo, entretanto, fazer uma crônica política pseudoerótica ou vice-versa. Aliás, odeio crônicas políticas; faltam-lhes paladar literário. Tenho, às vezes, ojeriza a Ferreira Gullar por isso. Gosto do poeta, apenas. Mas há algo que, após todo esse período de campanha eleitoral e de e-mails descabidos lotando minha tela, preciso dizer, num misto de desabafo, constatação, interrogação: Por que, há quase 50 anos do golpe militar e há mais de 20 da queda do muro de Berlim, tantos brasileiros ainda revelam um medo descomunal do comunismo?

Cá entre nós, até ouso uma hipótese: há uma menção de Salwa Al-Neimi, n’A prova do mel, exatamente à página 70, a um episódio televisionado ocorrido à época da Guerra Fria, em que uma senhora soviética responde a um norte-americano “Não há sexo na União Soviética...”. Uma Dilma assexuada e com um passado “comunista” deve soar, para muitos, como uma ameaça... A estes posso sugerir que ouçam uma marchinha de carnaval.

Ah! Sobre o romance lido, pretendo ainda escrever uma resenha. Por ora, deixo-lhes um fragmento do capítulo derradeiro: “Eu sou a dona da história (...). Eu conto e brinco com ela como eu quiser.”


    

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Esse meu gosto

     

Setembro acaba e se vão com ele os coloridos dos ipês... à ausência de música abro a torneira da pia do banheiro... bem sei... amanheci nostálgica... Não se iluda, porém: posso ter escrito isso apenas para exercitar minha paixão pelo uso das reticências. Tenho andado em uma fase de compor poemas, uma lírica entorpecente que me tira a exatidão necessária à crônica. No entanto, há em mim um desejo grande de ser exata. Não me basta o azul. Quero o azul petróleo intenso. É esse meu gosto pelo detalhe que me faz perceber que você vive, apesar do meu silêncio.

Bem sei... qualquer nostalgia que hoje me alimente a alma vai ter gosto de café recém-coado e de poesia de João Cabral de Melo Neto se encorpando em tela luz balão. Não se iluda, porém: posso ter escrito isso apenas para falar do que já li. Porque quero a educação pela pedra. Na ponta do cinzel, lições de estruturalismo e geometria. Estou cansada de tudo que é surreal e metafórico. No entanto, não gosto de precisar; gosto de querer, aliás, de quereres...os calmos e os urgentes. É esse meu gosto pelo querer que me faz perceber que você vive, apesar da minha esquiva.

Porque quero, mas me escondo. Só apareço na necessidade, no tão sem tempo do meu cotidiano, nas suas horas não contabilizadas. Sucessivas e exaustivas aulas de economia: equidade, qualidade, sustentabilidade... e um “eu” retraído... Não se iluda, porém: adoro desperdiçar – com fartura – meus sorrisos e minhas lágrimas. Sei ser amante, mesmo que não amada. E, quando amada, sei ser abusada. Não gosto do pouco; não me basta o devagar. É esse meu gosto pelo excesso que me faz perceber que você vive, apesar da minha negação.

Se qualquer coisa me salvasse e esse dia sem anúncio nenhum fosse só uma comédia hollywoodiana e na ponta dos dedos surgisse apenas a palavra nua e crua e você pudesse se iludir e eu pudesse ser sua nesse exato instante e a primavera me devolvesse floridos os sonhos da infância... meu gosto seria um só: perceber a vida que há em mim porque há você.


sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Ah! humores...

   
Em frente ao computador, tentando escrever. A mente não se dá conta da ansiedade dos dedos estirados sobre o teclado. Não sei o que me acontece às vezes, tanto dizer transbordando no peito e o pensamento na recusa da verbalização. Queria começar este texto assim: A alegria é tamanha. Um belo sonho. Um belo despertar.

Descubro, sem aflição alguma – é, o comodismo! – que meu mar de rosas é construção fadada ao desmoronamento antes mesmo de se consolidar como projeto. Os vãos das venezianas não me mostram tons de azul. O céu desfila, da hora inicial à hora poente, um cinza agourento de mudanças climáticas. Urge que eu me afaste dessas leituras de jornal. Elas andam a embaçar-me a inspiração.

Abro o dicionário. Quantos significados para a palavra “humor”? Desde uma possível sinonímia para índole, uma interpretação para estado de espírito, até uma explicação anatômica, advinda das investigações filosóficas, em que se associa humor às secreções corporais. O que se faz certeza entre minha sala de trabalho e o clima é que o dia se consome nessa dolente esquiva.

Chego em casa sentindo que se esvaíram todas as minhas energias (menos aquelas acumuladas em pneuzinhos que me constrangem ante o espelho e o guarda-roupa). A vida era pra ser uma experiência fascinante, mas descubro-me cansada e triste. Razão para tal? Questão de humor?

Não, não se faz momento para a reflexão. Melhor tomar um banho. Espaço para o despir: das roupas, das palavras presas, do cansaço, do comodismo. Banho assim, de água corrente, de temperatura amena, de janela semicerrada e de vapor condensando gotículas pelas paredes. Sem nenhuma consciência ecológica! A água a deslizar pelas curvas, as desejáveis, e as indesejadas também.

Sabonete líquido, cremoso, espesso... perfume que atiça os sentidos. Cheiro inebriante que lança o corpo na aventura do êxtase. Pelo tato vem a sintonia entre corpo e mente. O mar de rosas é projeto viável. Milagre de laboriosa arquitetura que desenha ilusões entre o corpo molhado e ensaboado e as sombras projetadas pela luz no vidro do box . Já não há mais dedos ansiosos ante o teclado. Ah! humores... Vem, em explosão íntima, um novo texto, em cuja primeira linha se lê: A alegria é tamanha...
 

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Aquele amor


Eu te amo ele dizia a ela e ela sabia que era verdade. Ele falava do perfume dela, gosto tanto! Ele a amava muito. Tanto amor que não cabia dentro dele. Isso lhe causava muito receio. Mas ela ria quando, no auge do gozo, ele falava um palavrão. Ele dizia até me esqueço que estou com uma dama. Aí ele mudava o vocabulário e amava mais ainda a cara de satisfação que ela fazia na entrega.


Um dia, depois de fazer amor, ele lhe perguntou se ela não sentia vontade de lhe bater. Ela disse não, por quê? você sente? Ele lhe confessou que sim. Ela riu e o beijou e se ofereceu de novo, inteira. Ele a amou, amou, amou...


Depois ele mergulhou em silêncio profundo. E não soube o que fazer com aquele grande amor. E foi se afastando...


Naquela noite ele entrou no bar. Ele nunca imaginou que a encontraria naquele lugar. Ela, depois de tanta água nos olhos, ainda mais linda! Falava coisas que denunciavam as marcas de sua ausência. Eu te amo ele disse a ela e ela soube que era verdade. Ela sabia que ele nunca deixaria de amá-la. Ela não falou nada. Saíram dali juntos. Silêncio profundo no pouco espaço daquele carro.


Silêncio também no leito que devolveu o sorriso a ela e que despertou nele aquela vontade novamente. Ela entendeu, beijou-o, deixou acontecer.


Horas depois, quando ele acordou, não sabia explicar onde estava. Por entre os vãos da grade via o rosto dela, amava a cara de satisfação que a fazia ainda mais linda, e enxugava a água de seus olhos. Tanta! De repente isso lhe causou muito receio. Viu o lençol, sentiu o perfume dela. Chegou o lençol ao rosto, foi enrolando, apertando. A imagem dela mais próxima. Eu te amo tanto!...


Alguém teve a ideia de enterrá-los na mesma cova. Aquele amor era pra sempre.


Cruz por Petr Kratochvil

terça-feira, 17 de agosto de 2010

O orvalho da lua



A luapor Bobby Mikul

Permita-me, leitor, que inicie meu texto com uma advertência. Na realidade, vou até abusar dessa permissão. Farei duas advertências. Sei que, ao fim das contas, é quase trabalho inútil. Vão as tais, porém, traduzindo, em linhas, o meu pensamento. Só leia este texto caso seu desejo de se tornar astronauta ainda soe forte no momento em que, pueril e louco, procura por vestígios líquidos nas crateras de outro corpo celeste. Só leia este texto caso esteja preparado, herói, para – elmo , escudo e armadura de terceira era – enfrentar o solo nu e misterioso habitado pelo dragão de Jorge.

Não se assuste, entretanto. Explico já o motivo de toda essa precaução, mesmo que, ainda assim, eu possa não me fazer compreender. Momentos antes de escrever o que aqui se segue, encerrei a leitura de uma reportagem* em cuja primeira página letras enormes veiculavam: “A nova lua é úmida, tem água, gelo e orvalho”.

A lua antiga já se fez cenário para as hieródulas dos templos gregos e para os seguidores emasculados de Cibele. A lua antiga já foi esperança de promessas de telescópio e espectometrias. A lua antiga já foi tapete para os pés de Armstrong. A lua antiga já foi cúmplice de minhas (nossas!) noites românticas, vapores a entontecer, o contraponto do brilho frio para o calor do afago...

Hoje... essa nova lua... que, pelos prazeres da ciência, se perdeu como divindade do puro prazer; essa nova lua que me vem em imagens coletadas por uma sonda espacial... Essa nova lua vem de novo, no novelo imaginário da fantasia. Faz-me falar de coisas esquecidas, perdidas no sol das horas. Apresenta-se como novo mistério. E o mistério é úmido! A água da vida no jogo do ocultamento e da revelação.

Não queira, leitor, chamar-me lunática! Seria apenas uma brincadeira semântica. Não queira também classificar meu texto com base nas categorias racionais em que aprisionaram sua forma de pensar o mundo. Tempo que se escoaria em vão.

Deixe apenas que eu fale assim, que eu siga assim, na minha condição feminina de intercalar fases. Que eu, desejosa de eclipses, seja ora crescente, ora minguante! E que, entre os estados sóbrio e ébrio da minha frivolidade, eu sinta o poder das marés como que a inundar-me com o orvalho da lua, a velha-nova úmida lua!

* Revista Planeta - Agosto/2010 
    

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Samba-canção


Um vidro. É o que separa a vida que vai aqui dentro da vida que vai ali fora. Fecho o livro que leio, história de um mundo diferente que não se recria em mim, mas somente ali, do outro lado da janela. Levanto-me. Prendo a cortina. Constato sem entusiasmo que o céu é azul. Como talvez nunca fora. Essa constatação faz doer ainda mais o pequenino trapo de coração.

O céu é muito mais azul que os olhos teus. Resolvo que preciso ouvir uma música. Um tango que seja. Um samba-canção... E a voz de Ney Matogrosso toma conta do ambiente: Se outro amor em meu quarto bater eu não vou atender* .

Muito mais que um vidro é o que separa a vida que vai aqui dentro da vida que vai ali fora. A história que criei, que não é para ser lida. A história que começa no exato momento em que teus olhos se fecharam. Porque a história de antes, esta trazia a tua assinatura também. O céu lá fora não devia ser azul. Nunca mais.

Um dia o céu e tua alegria eram uma só carne. E minha mão fazia movimentos no ar, flanava... buscando, pelo tato, reter o que a visão transformava em cor. Um dia a música era outra. E nela os reflexos do sol descortinavam qualquer sombra atrás da vidraça.

Houve um momento, porém, que a ti não bastou a solidez dos móveis. Amanheceste cismando com a fluidez da decoração. Tua alegria deixou de ser carne. Minha mão desconheceu o ar.

Sei. Eu não devia ser tão triste. Mas a janela... na verdade ali está o mistério que me imobiliza. Esse vidro, inevitável! Por que o céu insiste em continuar azul do outro lado?



(*) De cigarro em cigarro, composição de Luiz Bonfá, gravada por Nora Ney (1953). Regravação de Ney Matogrosso (“Beijo bandido”, 2009).


domingo, 1 de agosto de 2010

ao amargo do pé impotente...

     
Nascera sob o signo de câncer. Não que levasse a sério o que diz a astrologia. Mas aquele signo... Quanto de significação pode ocultar uma face da palavra...

Aquele caranguejo parecia não sair de seu pé. Pior: seu pé já era um caranguejo, carcomido pela ferida, não se deslocava mais. Fincara ali. Ali fizera seu esconderijo. Ali dilacerava seu corpo, surdamente espalhando-se, já atingia a medula. O pé já não existia; existiria outra coisa?


Que imagem agora se deformaria ante os olhos estarrecidos do pequeno animal? Mais uma vez era necessário retroceder.
Pensou em Ana. Será que ela lhe reconhecia tamanha impotência?

O trem ameaçou parar. E se ela saltasse por ali mesmo, qualquer estação desconhecida. Cumprir a sina de caminhar de ré. Entretanto, o pé doente não lhe animava o gesto de levantar. Viu algumas pessoas descerem na pequena estação. Viu outras tantas preencherem os lugares que mal se esvaziavam. Só seu vazio permaneceu.


Em que Ana pensaria agora?


Tirou o pacote de biscoito da bolsa. Comeu alguns, sem sentir-lhes o sabor. Sua boca sabia somente ao amargo do pé impotente, do pé falseante. Definitivamente Ana não poderia ajudá-la. Como desistir, no entanto?


O pacote de biscoitos voltou silencioso ao embrulho amarfanhado, misturado aos apetrechos que a bolsa feminina abrigava. Se ao menos ela chorasse... poderia descobrir naquele labirinto de mão um lencinho branco. Quem sabe assim a delicadeza do bordado amenizasse o peso da carga. Os ombros suportam o mundo, os ombros suportam aquela bolsa, os ombros suportariam sua decisão de fugir? Continuemos...
   

     

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Para além, o céu!

     Acervo pessoal
    
A mesa estava arrumada. Finalmente concluíra no horário as tarefas daquela manhã. Olhou mais uma vez, de relance, o céu. Uma pequena nesga entre a parede do sobrado e o muro da casa vizinha. Aquele tom de azul fazia-a sentir como se a vida lá fora zombasse do descolorido que ia pelo lado de dentro. Era um universo inteiro às gargalhadas transformando-a em truão ainda aprendiz, que faz rir muito mais pelo sem jeito das mãos inábeis que pela perícia exigida na atividade.

De qualquer forma, havia capricho na mesa posta. Faca à direita, garfo à esquerda. Quem repararia nisso? As filigranas da porcelana passariam despercebidas. Há muito que a delicadeza da louça é desnecessária. As cozinhas ganharam em colorido e praticidade. O que vai fácil ao lava-louças e ao micro-ondas...

Logo acima da mesa, na parede, o relógio em caixa de aço fosco denunciava sua pontualidade. De repente viu-se tomada pela angústia. Por que justo hoje o relógio decidira tornar-se seu cúmplice? Havia algo naquele céu sem nuvens que a puxava para fora mas, simultaneamente, fazia com ela se encolhesse toda, que emudecia qualquer reação de seu corpo debilitado, em ânsia de gritos, porém.

Estranhamente o cheiro derramado no ambiente era convidativo. Em alguns minutos a porta da sala se abriria e os passos acabariam na cozinha substituídos por bocas sequiosas e apetites vorazes. Dois quartos de hora depois todo o arranjo seria nada mais que vasilhame sujo sobre a pia. A rotina em derredor de si. E ela, torneira aberta, daria nova olhadela pela porta da cozinha, conferindo a cor do céu.

Gostara do fosco daquele relógio comprado após a instalação dos móveis planejados. Mas gostara de uma forma bem diferente de como gostara do aparelho de jantar, presente de um padrinho do casamento. O relógio parecera-lhe arrojado. Diferente dela. A porcelana representava a fragilidade, também diferente dela, acostumada à lide diária. Descobriu que a forma de gostar daquele azul que emoldurava as paredes para além de sua casa era outra. O céu era distância e liberdade.

Foi assim, querendo aquele céu, que entendeu o recado do relógio. Recolheu os talheres, devolvendo-os à gaveta. Uma a uma as louças iam caindo ao chão. Mentiria sobre um pequeno acidente - escorregara com todos os pratos nas mãos. Impossível salvá-los. Chorou lágrimas de alívio. Mal acabara de instalar-se no sofá, radiante, em frente à televisão, a porta da sala se abriu.
    

domingo, 18 de julho de 2010

O dizer do silêncio

 http://4.bp.blogspot.com/_BRTsFEeRtzs/SLSeE7kmi_I/AAAAAAAAAVg/BvJf626xLh0/s1600-h/silencio6.jpg


(Este texto, publicado em mídia impressa em 2006, foi produzido "por encomenda" e é uma das minhas primeiras incursões na narrativa em primeira pessoa, ainda que nele seja forte o viés acadêmico.)


A única glória no mundo — ouvir-te.
Daniel Faria, in "Dos Líquidos"


Quieta, no meu silêncio de cada dia, vejo-me incumbida de uma árdua missão: falar sobre o silêncio.

Diz-se do silêncio como a ausência de som. Mas ele é bem mais que o cessar do barulho. Uma página como esta, carregada de palavras, de frases, está toda entrecortada pelo silêncio. Sim, os espaços brancos da página são pequenos silêncios que, se costurados, evidenciariam horas da mais absoluta mudez. Um silêncio poético!

Há silêncios que ecoam dolentes: os silêncios do não-dizer. As vozes ocultadas, quer tenham sido reprimidas pelas ideologias dominantes, quer tenham se calado propositadamente. Um calar-se que esconde-revela duas possibilidades: uma renúncia covarde à manifestação, que se traduz num pacto coletivo medíocre de falta de posicionamento na sociedade, ou uma forma de resistência passiva, que opõe a fórmula “ofereça a outra face” à fórmula “quem cala consente”.

O linguista John L. Austin (1911-1960) escreveu "Quando dizer é fazer", obra na qual propõe uma teoria dos atos da fala, defendendo, sob um ponto de vista pragmático, que, pela linguagem, se tem uma ação capaz de modificar a relação entre os interlocutores. Em outras palavras, o enunciado é performativo: ao proferir algo, o falante está realizando uma ação. É o que se pode observar em frases como “Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. É o que Austin chama de força ilocucionária, que não está presa somente ao vocabulário ou aos limites da estrutura sintática, mas também a fatores que dizem respeito às condições externas.

Mencionei essa teoria porque, ligando-a à ideia anterior, quero levantar uma questão: como analisar o silêncio do não-dizer, ou melhor, o dizer do silêncio? Não pretendo, porém, buscar respostas.

Francamente, falar sobre o silêncio para mim, neste momento, está sendo calar uma voz que queria mesmo era falar de pitangas. Aquelas que saboreei há um tempo atrás em companhia de alguém muito querido. Palavra alguma foi dita, entretanto os olhares gritavam ensurdecedores. Quanto de dizer – apesar do não dito – naquele pomar!
   

quinta-feira, 8 de julho de 2010

O poço dos desejos


Morava em um lugarzinho quando eu tinha 15 anos. Era bem deste jeito: na porta da sala daquela casinha havia uma cisterna. Acabamento rude, buraco cavado artesanalmente. Um sufoco para se descerem aquelas manilhas! Só lá no final do lote, um portãozinho, na cerca de bambu, acenava para a rua de terra. Antes dele, o varal cheio de roupas. Trabalho exaustivo do sarilho subindo baldes d’água até que as roupas alcançassem esse destino.

Eu sonhava com casas em que a porta da sala se abrisse para um jardim, um gramado, flores, rosas... e pedras decorativas. Eu sairia pisando um pé em cada pedra e chegaria ao portão. Minha mãe, quando eu era ainda mais criança, falava em festas de 15 anos. Cresci sem saber o que era o tal “debutar”. Palavra feia essa também, não?

Um dia apareceu lá minha fada madrinha, invisível até para mim. Fato é que a cisterna se transformou em poço dos desejos e o príncipe encantado segurou minha mão. Sentados diante da ausência de jardim, a querência nos olhos, a promessa silenciosa de amor eterno, daquele que prescinde do sapatinho de cristal.

Há muito já não lanço a corda ao poço nem ergo baldes pela força manual. Para as roupas, a máquina de lavar. Hoje, olho para a casa em que moro. O jardim é minúsculo, mas existe. A casa é fruto de trabalho árduo. Desculpe-me, leitor, se pensou “Príncipes encantados não existem. Está vendo? Ele não lhe deu um castelo.”, porque seu pensamento é muito menos real que minha fantasia. É que príncipes encantados não oferecem coisas concretas.

Os sonhos foram se transformando à medida que o avançar do tempo exigia a duplicação dos 15 anos. Um pé em cada pedra? Por vezes os dois pés em uma única pedra. Momentos até em que eram os pés sob as pedras. Nas madrugadas insones, entretanto, a água dos olhos são respingos da fonte dos desejos e, na superfície líquida, vê-se ainda o reflexo das mãos entrelaçadas.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

A praça

    
Acordei nesta manhã dominada por aquele friozinho mineiro de inverno que faz a gente querer “quentar sol”. Logo depois, saí para trabalhar – de carro – e passei marginando a praça – vazia! Não sei se foi o frio ou o cachecol da moda, que trocou o aconchego morninho da lã pela estampa reveladora das tendências da última coleção francesa... O fato é que fui invadida por uma melancolia cuja suavidade me trouxe à lembrança as praças de minha história. Ao percurso do carro somou-se o percurso de resgate da memória. Este último obviamente sem nenhuma linearidade ou constância.
  
Atualmente, em sua maioria, o fervilhar das praças foi substituído pelo burburinho dos shoppings. Mas, era uma vez um tempo em que as praças eram a vida orgânica das cidades, espaços urbanos por excelência. Naquela época não havia aniversário de município sem inauguração de praça.

Era uma vez uma praça, quando eu tinha sete anos. Começo por ela, pois que se tratava de inauguração de uma praça pelo prefeito da cidade. Fato que, posteriormente tomei ciência, definiu minha posição política. Em Contagem, Minas Gerais – Não sei quem teve a infeliz idéia! – todas as crianças da escola, devidamente uniformizadas, no período da tarde, esperando sob o sol pelo ilustre e atrasado prefeito. Momentos intermináveis de calor e sede fizeram com que o cérebro não registrasse o viço daqueles jardins nem sua exata localização.

Era outra vez outra praça. Esta sim, imponente, majestosa. Sua imagem é meu verdadeiro referencial de praça. Alia-se à exuberância paisagística de seus jardins versalheses a exuberância arquitetônica que mescla o fim do século XIX à modernidade de Nyemayer e à futuridade do “Rainha da Sucata”. Cores... de tintas... de flores... dos amores de minha imaginação... de minha personalidade mista de Hilda Furacão e Bárbara Heliodora... do poder público dos dias úteis... do poder do povo na feira de domingo. O lugar em que gostaria de estar toda vez que a saudade me trava o raciocínio e me embaça a visão.

E foi à época em que frequentava com regularidade essa praça, a Praça da Liberdade, que pude ir a uma outra da qual guardo um fato singelo. Em Ouro Preto. Em excursão com um grupo de alunos. Caminhava ao longo da Praça Tiradentes, distraída no pisar das pedras e na conversa dos colegas. Alguém falou algo de que não mais me lembro, mas que me fez sorrir. Sorriso largo, de quem está achando maravilhoso o céu azul esparramando-se sobre o verde escuro das montanhas. Não prestava atenção no grupo de estudantes ao pé da porta da república. Nem guardei o rosto do moço que disse “Que sorriso lindo!”, embora ele tenha me olhado farta e demoradamente. Entretanto, registrei na memória o episódio, a amplidão daquela manhã, o tom dolorido do concreto da praça e a amargura barroca incrustada entre os museus da Indepedência e de Mineralogia.

Na praça de hoje, nem os rotineiros caminhantes em sua prática de atividades físicas. Mas a frígida solidão dessa praça também emociona, pelo desvelamento intimista. O pálido, rasteiro e ressequido verde, planificado na ausência das flores, é a tradução da relatividade do tempo. Estou em meu carro, já longe, mas sinto-me sentada ali, vestida de rosa antigo, reaninhando em meu colo a adolescência perdida. Dando lugar à fragilidade que sempre recusei, exponho-me ao frio e aos tênues raios de sol.
   

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Um exercício

   





hoje vou fazer um exercício de escrever sem pontuação que é pra ver se a alma flui sem pressa sem interferência sem interrogação também vou deixar de usar a letra maiúscula pois que sem ponto sem marcação de início de frase tudo se justifica

hoje vou fazer um exercício de não falar do cotidiano que é pra ver se a alma flui atemporal universal coisa difícil esta porque não sei existir sem me delimitar sem falar do sol e das estrelas sem pensar na folhinha arrancada do calendário

hoje vou fazer um exercício de escrever bem pouquinho cortando o pensamento quando ele navega nas entremargens da distração que é pra ver se a alma perde a subjetividade e se torna algo assim previsível e sempre reconhecível

necessidade de transformação necessidade também de sensatez mas só hoje que amanhã volto ao normal tudo igual porque

não consigo refrear meu pensamento e ele já vai lá longe um barquinho revolto por entre as águas que sucumbem à força da cachoeira e o que sobra dessa queda sei lá tudo imprevisível é que de repente passa um galho me faço resgate as margens ficam para trás e o horizonte é largo ante as retinas renovadas

não consigo fechar meus olhos a esse mundo de terra-céu-luz e tudo segue o rumo de um relógio cujo ponteiro sim analógico claro me diz que é hora do banho da criança que é hora de fechar as janelas por causa dos pernilongos que é hora do jantar que infelizmente não vai dar pra ver a novela mas quem sabe o jornal ou o futebol ou um filme qualquer que seja e de repente o sono chega

Não consigo. A interferência, a interrogação... necessidades desta alma, que, para fluir, precisa desconhecer que um momento é permanência e outro transformação. Esta alma que precisa da certeza de se saber balizada pela linguagem e busca, nas regras da pontuação, uma forma de justificar sua insensatez. Entre as dobras minúsculas do aparato gramatical, a vida segue como um exercício.

     


sábado, 5 de junho de 2010

Um poeminha para seu sorriso


     
   Imagem: http://www.public-domain-photos.com/flowers/hibiscus-3-4.htm



Sorria para mim
Sorria hoje, sorria sempre
Que os seus olhos são doces e vorazes
Mais ainda que suas mãos.
Não, não quero ser sensual
Quero alegria pura!
Sorria para mim
E eu vou ver os brinquedos que trouxe
E vou falar seu nome
E vamos rodopiar pelo quintal
Como se dançássemos em um salão de baile.
Sorria para mim
E a sua boca vai resplandecer para sempre
Na altura dos meus olhos
Vorazes e doces
A colherem o seu nome
Fonema por fonema
Fazendo-os rodopiarem pelo quintal
Fazendo-os dançarem no seu sorriso
Enquanto vejo os brinquedos que trouxe.
Não, não quero ser sensual
Ainda que suas mãos...

 
 
   

sábado, 29 de maio de 2010

O vendedor de abobrinhas

   
Conheci um mercador. Vende abobrinhas no Ceasa. Não sei por que me ocorreu a palavra mercador. Parece tão sem uso. Soou-me arcaica. Ação inconsciente talvez, para aproximar-me das minhas ilusões românticas, embora o vendedor nada trouxesse de semelhança com um príncipe encantado. O viço dos frutos, entretanto, era em meus olhos um tapete mágico, pelo matiz do conjunto, ali estendido, em convite ao pé do ouvido para um recanto de mil e uma noites. Eu bem que poderia aceitar o passeio, atravessar toda a cidade, não fosse a aspereza das caixas dos vegetais a me lembrar que o milagre da varinha de condão se faz com hora marcada.

A fala do vendedor é história e seu produto é regalo que me satisfaz. Imagino todas essas saborosas abobrinhas se autopromovendo em banquete de verduras falantes diante de um gramático puritano, daqueles que não sentem cosquinhas de forma alguma e torcem o nariz para uma xicrinha de café. Tão gostoso falar abobrinha! Decerto isso me chamou a atenção naquele moço de voz firme a anunciar seu produto. Nenhuma relação inconsciente com meu mundo de contos de fadas.

Adoro as armadilhas do idioma! Proparoxítonas são pronúncia melodiosa somente na voz de Chico Buarque. Porque o meu mercador – ai! deem-me licença, preciso desse possessivo! – porque o meu mercador não se sentou pra descansar como se fosse sábado, não comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe, não bebeu nem soluçou como se fosse um náufrago, não dançou nem gargalhou como se ouvisse música. Ele apenas chamava a freguesia em linguagem tão cotidiana quanto seu marketing. O som inconfundível de quem verbaliza com maestria o processo da síncope, pois já viveu na pele a aventura de atravessar um corguinho.

Vejam bem a que recanto me trouxe esse tapete mágico! Ah! Se todas essas abobrinhas se transformassem em mandrágoras! Minha voz não tem tanta força perlocutória. Não sou princesa; tampouco sou bruxa. Meu mercador é um homem comum, no exercício de sua profissão. Eu... eu vendo histórias. Em mercado algum. Para comprador algum. Não, não as vendo. Distribuo-as livremente pelo espaço, enquanto atravesso a cidade, apesar da aspereza das milhões de caixas-casas que não as acolhem. Óbvio, não são abobrinhas. E isso causa uma distância enorme entre mim e aquele vendedor.


Um tapete mágico qualquer para um mercador especial (ou um tapete mágico especial para um mercador qualquer)
   

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Vícios

  
Fim de tarde. Hoje eu não bebi. Falo coisas assim sem sentido, mas estou embriagada de mim mesma. Aliás, não tenho o vício da bebida, assim como não tenho qualquer outro vício, além deste de ser uma eterna peregrina. São essas viagens, eu sei, que me deixam desnorteada, que fazem quem me vê de passo trôpego imaginar-se dividindo a calçada com uma extática inconsequente.

Leio, em gesto autômato, o neon do célebre bar e, em decorrência nada automática – o pensamento e suas costuras enviesadas –, lembro-me de um livro lido há alguns meses*. "Bar e lar têm como que uma complementaridade ambígua, às vezes contraditória (...). Sem bar (...) não existiria a poesia de Vinicius de Moraes.” Sem lar não existiria a minha poesia. É desse lar, chão do qual germina o que não foi dito, o que não era para ser dito, que me distancio.

Viajar virou um vício, mas não substitui este outro, o de poetar. Menti, não é mesmo? Disse que era só um o meu vício. Não, na verdade, não. Há ainda, preso, recalcado, vício muito maior e bem mais prejudicial: esse amor que me consome por dentro e, em movimento dissonante, imposto quase que como castigo, me torna cada vez mais bela na aparência.

Tenho a pele uniforme e aveludada. Não vou falar de pêssegos (clichê?!). Gosto mesmo é de morangos suculentos, o caldo escorrendo pelo queixo, mas a superfície não tem a suavidade necessária à comparação. Trago a luz das estrelas nos olhos. O sorriso alvo de flor branca de lótus – um indiano disse-me isso uma vez. Na geografia das curvas acentuadas, meu corpo é a poesia que não posso lhe oferecer.

Há bancos na calçada. Um deles acolhe a vertigem que, insolente, tenta roubar-me a verticalidade. Em meio a tanto a admirar, enxergo apenas a euforia dos pombos diante de migalhas ali atiradas. Bar e lar confundindo-se na negação da diferença fonética. Uma enxurrada de arrulhos. Qualquer idioma para esses versos viandantes que não conseguem calar a ânsia desse corpo meu-não-seu sempre sóbrio. Fim de tarde... Para os pombos.


* BEIRÃO, Nirlando. Original – Histórias de um bar comum. São Paulo: DBA, 2008.
  

sábado, 15 de maio de 2010

Rosas

    
"Rosa é a flor feminina que se dá toda e tanto, que para ela só resta a alegria de se ter dado."
(Clarice Lispector)
    

Não é época de rosas. Mas segredos são para qualquer época. Guardados, revelados... o perfume está ali. Parece estranho esse início de texto? Poético, piegas? Não me importa agora o adjetivo que lhe venha a ser atribuído. Estou nostálgica. Daí embriagar-me no perfume das rosas que se abrem, espalhando risonha e impiedosamente meus segredos para o mundo. O céu azul e limpo é vastidão e, às vezes, desamparo demais.

Vai lá um sorriso de criança, os cabelos dançando ao vento, os pés ligeiros por entre as pedras do jardim. As mãozinhas ávidas colhem todos os meus segredos, dão a eles o colo da proteção, o carinho dos afagos, a quentura do olhar. Estou nostálgica. Daí embriagar-me desse hálito e aceitar o ninho desses braços.

Qual a fonte de onde se originou tamanha sensação de nostalgia? Ela, a roseira, estampada numa foto que acabo de rever. Dirão, talvez, se está a rever fotos, é sinal de que a nostalgia já havia se instalado anteriormente. No entanto, juro, não! O álbum de fotos foi tirado da gaveta (pasmem) porque precisava localizar a foto de um bolo de festa (pasmem mais ainda!) feito por mim. Não tenho grandes dotes culinários, mas tenho uma receita de bolo fofíssimo, saborosíssimo, que faz sucesso na família. E tenho a delicadeza da simplicidade de transformar glacê, coco ralado e confeitos coloridos em decoração artística.

A foto do bolo não achei. Mas a roseira carregada estampava-se à minha frente. Flores tão vivas, oferecendo-se à admiração, implorando por admiração! Vem meu filho e pede “mãe, faz arroz doce?”. Vou. A foto me acompanha, depositada em local próximo ao fogão. Meu corpo é também rosa aberta, entregando-se ao espírito maternal. Tantas outras urgências! Qual delas, entretanto, compensará o lambuzado sorriso pueril que traduz a cumplicidade entre talher e queixo?

Não é época de rosas. Pelo menos dessas que florescem naturalmente nas roseiras, sem necessidade de grande atenção, crescendo a esmo. Escorreguei na arte culinária, caí no jardim, meus segredos voaram. Retornaram, porém, entrelaçados em um buquê de dedinhos, respingados de arroz doce, exalando histórias...

Quem, nesse momento, dá colo a quem? Daí embriagar-me nesse rio que escorre pelos vãos dos dedos. Meus olhos se liquefazem à imagem da roseira em foto, devidamente abrigada entre as páginas do álbum. Guardo os segredos na gaveta. Entrego-me à nostalgia.




Um jardim qualquer de uma casa não tão qualquer em uma cidadezinha qualquer (Acervo pessoal)

        

sábado, 8 de maio de 2010

As janelas se expandem para além da torre...

   
Abro a bolsa. Não encontro meu pendrive. É noite e não posso voltar para buscá-lo. Sem o arquivo necessário para o término de um serviço já iniciado... de repente é como se me sentisse vazia. Ligo a TV, novela das oito, e a torre Eiffel me aparece na tela. Outro dia, acho que desta mesma semana, era a torre de Belém.

Nem uma nem outra carregam histórias de românticas princesas. Aliás, creio que torres sejam obra antiga de engenharia cuja origem em nada remete a contos de fadas. Mas não consigo fugir à correlação estabelecida inconscientemente pelo meu pensamento. Perdoe-me a ignorância, Mr. Freud, se pensamento e inconsciência forem coisas incongruentes. A verdade é que vejo torres, penso em amores. A Psicanálise há de explicar.

Talvez para livrar-me dessa simbiose semântica e mostrar-me mais racional, dirijo-me à estante em busca de um livro de símbolos*. Encontro clara referência à função defensiva de tal obra arquitetônica. Encontro também uma alusão à presunção humana, simbolizada, sobretudo, pela torre de Babel, na aspereza das palavras ascensão e ambição. Para meu conforto, porém, eis que leio quase ao fim do verbete a expressão de meus pensamentos: “Na arte, a figura da Castidade aparece às vezes numa torre, como ocorre com as donzelas em situação angustiante dos contos de fadas”.

Afetada pela imagem televisiva, afetada pela leitura. O vazio, agora preenchido pelo tumulto do pensar, da imaginação. As janelas se expandem para além da torre. Como é bom que esqueças o pendrive! exclama a voz que se sente liberta.


* TRESIDDER, Jack. O grande livro dos símbolos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
     

Torre de Belém (Portugal) - Acervo pessoal
    
     

sábado, 1 de maio de 2010

Os quereres do ontem e do hoje

   
Por trás dos véus impostos pelas relações sociais, escondo minha subjetividade de mulher absolutamente romântica, cujo coração se faz cofre para o segredo de um grande amor. O vento, moleque abusado, vez ou outra me trai, coloca à mostra, qualquer que seja, um fragmento do que deveria, por princípio, ser apenas esconderijo. Escapam-me, assim, fugidios, por uma janela aberta, alguns pensamentos, alguns quereres.

Tenho predileções tão comuns, aparentemente... tão inusitadas, às vezes. Por exemplo, gosto de nomes que contenham dígrafos vocálicos, duas letras num único som, sem obstáculos. Gosto de andar de mãos dadas. Gosto de corpos lânguidos sob a luz do sol nascente, que se insinua pela vidraça. Gosto desse vento, varrendo pela janela as frestas do oculto. Quereres!... Histórias!...

No meu tempo de vai-e-vem entre o real, os sonhos e as lembranças, vejo-o de novo. Entra na sala. Sorrateiro, de camisa preta, observador. Aquele brilho lacrimoso no olhar, que lhe conferia um semblante contemplativo. Nada diferente de quando ele entrou na minha vida. História antiga que mistura ingenuidade e desejo.

Foi assim que ele entrou na minha vida: um nome, aquele do meu gosto, de amplitude vocálica. Depois um rosto, um sorriso lindo, um par de olhos que, não fosse eu ainda tão inocente e de pouca leitura à época, diria, deixam a gente comovida como o diabo! E um pedido de ajuda. Ajudei. Uma ajuda ridícula, claro. Ele não precisava da minha ajuda. Suas hábeis mãos já eram, naquela idade, suficientemente autônomas para a construção. O pedido foi sua primeira arma de sedução. Crianças também sabem ser sedutoras. Aprendi a amar assim, na crença de estar ajudando.

Agora, ali, ainda à beira da porta da sala, ele tira a camisa. O peito nu é convite para o desejo reprimido em meus, em seus olhos. O beijo, vontade e mácula de toda uma vida, aflorou, para, logo a seguir, murchar nos lábios. O corpo moreno fosse inteiro um foco de raios ultravioleta sobre minha pele branca e não queimaria tanto! Necessário fechar os olhos para voltar a enxergar.

Houve, um dia, o entrelaçar dos dedos, aquele do meu gosto, durante uma curta caminhada, de tamanho exato para a descoberta de uma nova sensação tátil e para a certeza de uma cena inesquecível. O gesto desprezou qualquer pedido. As hábeis mãos já eram, por si, sua arma de sedução. Aprendi a amar assim, pelo calor do toque, pelo silêncio da carícia.

Da poltrona em que estou sentada, olho-o novamente, tomando cuidado para ser bem discreta. Não adianta. A porta da sala não oferece ângulo bom para meu disfarce. Em determinado momento, os olhares se cruzam. O ardor de sempre toma conta de mim. Fecho novamente os olhos.

Eu, criança, numa noite de casa cheia. Hora de dormir, decretou a mãe. Hora de separar?, chorou meu coração. Como explicar a vontade da menina que não quer mais ficar longe de seu amado? Algo na mulher em embrião adivinhava o sofrimento da distância constante.

Houve a hora certa para que o sol invadisse o leito de dois amantes, despertando os corpos lânguidos, aqueles do meu gosto, que antes do sono haviam se pedido em ânsia incontida. A querência que se construiu arma de sedução. Aprendi a amar assim, na expectativa de momentos tórridos, entremeados à solidão das lembranças.

Já não estou mais na poltrona. Não vejo a porta. Não o vejo sem camisa. O calor, o tempo abafado, esses véus que me encobrem, tudo me parece desconfortável. Mesmo assim, aqui nessa sala, diante da janela aberta, espero. Sei que haverá vento, aquele de que tanto gosto! Em breve.
      

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Sonhos, mentiras e interrogações

    
Há em mim uma busca constante, uma inquietude. Alcançar o meio termo é tarefa desastrosa. Nem tanto à terra, nem tanto ao mar! Pensei, então... quem sabe sou de natureza etérea? Mas nem aí a tal da calmaria: Hélios baniu de meu mundo onírico qualquer pretensão a Ícaro. Fiquei aqui, me fazendo Ismália. Oh, céus! Meu sonho foi... (Socorro! Não há nenhum adjetivo em língua pátria correspondente a Hades? O inferno só pode ser dantesco?)

Que fazer à falta da palavra desejada? Abandono as agruras do idioma e narro meu sonho. Alto lá! Narro nada! Descrevo. Um personagem. O que me deixou assim, tão abalada, a ponto de misturar, em um mesmo parágrafo introdutório, mitologia grega, Alphonsus de Guimarães e Dante Alighieri. Pois que o dito cujo se assemelhava à figura folclórica da caipora, dava saltos, contornando o próprio corpo com as pernas, num malabarismo descomunal, visto que – chamou-me realmente a atenção esta característica – as pernas eram curtíssimas!

Ao acordar, meu primeiro pensamento foi para minha mãe. Cena familiar. Os filhos todos juntos e o sermão. A mentira tem pernas curtas. Sabedoria materna, aos olhos – e ouvidos – da prole medrosa. Aos olhos da ciência, entretanto, na repetição do ditado popular, discurso de mãe, ignorante da biografia de Lautrec, mas poderosa em seu papel social. Pronto! Estabelecida a relação entre sonho e realidade. Só por que o princípio deste mês foi justamente primeiro de abril precisava haver tanta mentirinha de pernas curtas no meu cotidiano? E essas mentirinhas precisavam invadir meu sono, materializadas nessa figurinha horrenda?

As mentiras, não as contarei, uma vez que me refiro àquelas diminutas, as do meu pequeno mundo. As grandes, nem ouso abordá-las neste momento! Falar sobre essas pequenas mentiras seria desfiar um rosário de problemas domésticos para os quais tenho tentado piamente seguir a fórmula de “O Segredo”. Só falo sobre as coisas que quero atrair. Por favor, não fiquem curiosos! É mesmo perda de tempo.

Conto das minhas indagações, minha busca sem fim. Aquele meio termo que persigo. Aquele que não me veio nem por terra, nem por água, nem por ar. Sobrou-me a tentativa do fogo. Purifico-me nele, afastando-me desses mentirosos que querem roubar até minha tranquilidade noturna? Terei eu, ainda que inconscientemente, alguma similaridade com Joana d’Arc? Ou arranco de mim algum passado nero (assim mesmo, nenhuma grafia errônea, letra minúscula, – novamente a falta do adjetivo!) e saio ateando fogo nesses grotescos caiporas que insistem em transformar minha vida em lenda?
   

domingo, 18 de abril de 2010

Poema tirado de um poema


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Poço do Coração - Carrancas/MG

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Um dia ele leu em um poema meu

“e a sede dos meus lábios já encontrou alívio nas minas do seu corpo...”

Nunca mais ele conseguiu gozar sem pensar na minha boca.

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sábado, 17 de abril de 2010

Lembranças de Leitura

    
O mês de abril guarda uma data talvez pouco significativa para os mais novos: o dia 21 de abril. Em meio à algazarra que a sociedade de consumo promove com o coelhinho da páscoa, a figura de Tiradentes, ainda que as guloseimas incitem a um alerta sobre a possibilidade de cáries, passa despercebida. Entretanto, por mais que apagado, o dia me remete a Cecília Meireles, um alvo certeiro da minha paixão pela literatura brasileira. Explico: Cecília é autora de uma das minhas obras prediletas: Romanceiro da Inconfidência.

Não vou me adentrar nos aspectos sobre os quais discorreria um cientista literato ou mesmo um crítico de arte. Vou, pelo contrário, falar de experiências vividas.

Num tempinho que já vai adiantado, coincidentemente, 21 de abril – de 1993 – , os eleitores brasileiros foram convocados a optar, em um plebiscito, pelos regimes monárquico ou republicano e ainda pelas formas de governo presidencialista ou parlamentarista. Havia eu, naquele tempo, me mudado para Belo Horizonte, sem, no entanto, ter realizado a transferência do título eleitoral. Em virtude disso, comprei meu formulário de justificação de ausência e dirigi-me à enorme fila para tal fim que circundava o quarteirão do prédio dos Correios, no Barreiro.

É claro que, em tais circunstâncias, estava sempre prevenida, carregando um livro que tornasse a espera menos dolorosa, ou para os de espírito supercapitalista – que seu Deus os tenha – mais produtiva.

Foi assim que abri meu exemplar do Romanceiro, recém-comprado, cumprindo a promessa de que, quando a situação financeira permitisse, realizaria o sonho de montar minha biblioteca pessoal. Esse livro já estava escalado para fazer parte dela. Estava atrás de mim um casal de namorados e o rapaz entremeava à conversa com a namorada uma larga olhadela à minha página. De uma forma quase automática, passamos a uma leitura coletiva, embora silenciosa, marcada apenas pelo sinal de que a página já podia ser virada.

Caminhamos, no moroso passo da fila, embalados pelas redondilhas árcade-modernas de Cecília. “Doces invenções da Arcádia!” Rapaz privilegiado: dividiu horas que poderiam ter sido extremamente tediosas com três magníficas mulheres! E assim participei (!), com uma alegria ímpar, da decisão por um governo republicano-presidencialista.


(Texto já publicado em mídia impressa)
    

sábado, 10 de abril de 2010

Do que vai escrito nas estrelas

     
Acabo de ler meu horóscopo mensal. Meio vencido, pois que já vai um terço do mês! Deus meu!, não ando conseguindo acompanhar esse tempo relativo que o Einstein resolveu decretar. Saudade daquela semaninha de sete dias do Gênesis, em que luz e treva se sucediam normais por seis vezes e na sétima era o direito ao descanso. A astrologia revela-se também tempo, ante meus olhos ledores de qualquer coisa que se faça signo, e traz cronologicamente um fim e um início.

Reproduzirei, mas – ah! – não citarei a fonte. É horóscopo; está escrito nas estrelas!!! Tão fácil também descobrir essa fonte! Eis: “Março acaba e deixa um presente pra você: mais consciência e amadurecimento. Com isso, você pode escolher com segurança onde quer colocar seu empenho daqui em diante. Abril será um mês de desafios e você agora já tem conhecimento pra seguir sem se abater por isso.”

Não pensem, porém, que falo disso sem conexão alguma. Repito aqui essa ideia de encerramento porque a morte esteve próxima a mim durante o mês de março e também nesta primeira dezena de abril. Por pessoa que morreu... por conversa sobre o assunto... por devaneios da mente, por tragédias urbanas... talvez também porque a quaresma insiste em esmagar os últimos dias do verão. A morte... desígnio divino, superação, livre arbítrio. Não pode o homem deliberar sobre o fim da sua própria vida? Se a morte é a única certeza, por que tanto medo dela? Acaso o homem só gosta do incerto? ... E o verão morrendo, para dar lugar ao outono, que também, a seu modo, é morte.

Já me fiz morrer inúmeras vezes nos textos que escrevo. Confesso, às vezes é bom me matar. Faço melodramas, choro horrores observando meu corpo dilacerado em meio a palavras desconexas. Há um sádico prazer na desconstrução. Morrer é fugir do peso que nos imputam ao nos fazerem acreditar que é preciso saber viver. Quem deveras sabe viver? Pecado original é na verdade a dor da existência. A morte é salvação. Porque é prenúncio de vida. Da páscoa que vem a seguir.

A páscoa é o que vem após a morte, no abril da renovação. Algo há de surgir após as indagações. Mas vejam bem o que virá: desafios. Como se cada dia já não me trouxesse um desafio! Oxalá, se não é pra continuar morrendo?... Viver é perigoso, já dizia Guimarães Rosa. E a terceira margem do meu rio me acena com mais consciência e amadurecimento. Claro! O tempo passando, absoluto em sua relatividade. Sou obediente nessa história de amadurecer – por dentro. A pele, rebeldia deliciosa, continua avessa às rugas, refletindo minha obsessão por deixar as roupas alisadinhas, mesmo que isso signifique horas a mais junto ao ferro de passar.

Roupas bem passadas no armário são um luxo, um presente para mim, praticamente um guarda-roupa renovado! Salvação! Elas retornam aos cabides, às prateleiras, todas as sextas-feiras, rotineiramente, pra dizer que o dia seguinte é o dia sétimo. Ainda que a obra não esteja toda feita e que o período do descanso não esteja sob controle de homem algum. Todas as coisas seguem. Escritas nas estrelas!
      

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Atar as duas pontas

       
Aprendi a ler e escrever aos quatro anos de idade. Fato de suma importância na história da minha infância, porque me tornou, numa família de cinco filhos, assunto de pauta na conversa com as visitas de domingo. Quando precisei ficar internada, ainda tão pequenina, ler o crachá do médico transformou minha passagem pelo hospital em um agradável passeio. Ganhei uma coleção de livros do pediatra; praticamente o primeiro presente da minha vida. Ganhei admiração. E acredito que sou a única pessoa do mundo que, ao sonhar com as paredes clarinhas daquela enfermaria, acorda com um sentimento nostálgico.

Bem, por que estou a falar de quando aprendi a ler e escrever? Talvez porque, dentre todas as atividades que realizo, as únicas que realmente sei fazer são essas. O problema é que, mesmo afirmando que sei fazê-las, acabo por não executá-las. Daí, a fonte de minhas ansiedades. A vida é uma luta insana contra o tempo. Planejar é simples. Executar os planos, porém... A necessidade de sobrevivência prevalece sobre a necessidade de satisfação pessoal. Não consegui o equilíbrio dessa equação ainda.

Há dias, entretanto, que, em plena execução de qualquer outra tarefa, me vem tão nitidamente a vontade de “chutar o pau da barraca” e sei que para isso preciso ir lá na infância buscar a coragem perdida. Sócrates sabia muito bem a inatingibilidade de “Conhece-te a ti mesmo”.

Em minhas "n" tentativas de escrita tento conciliar o paradoxo que sou, ou que acredito ser. Romântica e moderna, tenho em mim um pouco de Scarlet O’hara e de Julieta. Morro pelo meu amor. Nunca morro de amor. Levo ao pé da letra a ideia de que os opostos se atraem, embora me ache tão parecida com meu par perfeito. Só não me perguntem sobre o meu par perfeito, por favor! Em decorrência da coragem perdida, trago a alma carregada de segredos. Devo ter alguma ligação genética com Bárbara Heliodora. Ou toda a angústia é só porque nasci em Minas, principalmente cresci em Minas, só morei em Minas. Ah! “o hábito de sofrer, que tanto me diverte”!

Difícil essa proposição imperativa de conhecer-se a si mesmo. Eu até proclamaria: impossível! Mas deparo-me com Chacal a dizer “Só o impossível acontece! O possível apenas se repete, se repete, se repete.” Não quero uma vida de eterna repetição, embora me sinta numa tendência a ser cíclica, atar as duas pontas. Deve ser por causa da variação hormonal feminina, ou a lua tem forte influência sobre mim, ou viver é isso, não é?...

O ciclo, entretanto, apresenta uma grande vantagem: não há ponto inicial nem final. Isso me consola por demais, porque (p...) me derramei nestas linhas e está difícil agora escrever seguindo a velha fórmula início-meio-fim. Entrego-me ao movimento. Que se repita! É tudo possível.
     

sexta-feira, 26 de março de 2010

Folhas de Plátano


        
Descobri, de repente, folhas de plátano espalhadas pelo chão. Olhei no calendário e, apesar do excessivo calor, constatei que já era outono. O desconforto que eu atribuía à sensação térmica, num piscar de olhos, cobrou-me a razão. Descobri, de repente, que a juventude acabou.

Moda vai, moda vem, e não se percebe a passagem do tempo. Até que um dia... dá-se conta de que já não se é o caçula da família, o aluno mais novo da sala de aula, o mascote da turma, o recém-contratado da empresa. E quem vem chegando praticamente sempre tem idade inferior a quem já está.

Como foi que descobri pálido o viço da juventude? Não consigo lembrar em que noite dormi criança e acordei adulta, embora me lembre bem do sabor de amadurecendo dos frutos, inclusive dos proibidos.

Entre as minhas andanças literárias, li uma vez – uma vez é força de expressão (ou será fraqueza?); li várias, tantas vezes, que é assim que costumo fazer quando algo me comove. Bem, li. Em Clarice Lispector. “Um domingo de tarde sozinha em casa dobrei-me em dois para a frente – como em dores de parto – e vi que a menina em mim estava morrendo. Nunca esquecerei esse domingo. Para cicatrizar levou dias. E eis-me aqui. Dura, silenciosa e heróica. Sem menina dentro de mim.”

Quando li isso, já havia experimentado as dores do parto. Não tinha, entretanto, experimentado essa noção de morte. Eu virava as páginas, sem me dar conta de que os acontecimentos narrados em algumas delas seriam irrecuperáveis e, então, eram já substância inerte. Ao ver a planta brotando, regozija-se com o milagre do verde nascedouro; não há mais preocupação com a semente.

Muito do que li, reli depois das dores do parto. Não havia, porém, percebido a dimensão do heroísmo. Esse de dar a vida num crescente silêncio. Ah, quanto me calo até no que digo! Ah, quanto se calam os meus personagens! E quantos terremotos são abortados no meu calar! O tempo é soberano, poder-se-ia dizer. Tenho aprendido com ele a gostar até dos maus momentos. Ah, as dores! Vou me deixando ferir e fico depois recosendo as cicatrizes. Ora, faço questão de ostentar as marcas que nenhuma maquiagem disfarça, ora isolo-me na vã tentativa de escondê-las. Dureza, silêncio e heroísmo!
     
Domingo a domingo, nesse eterno outono, vão caindo as folhas secas. Entretanto, recuso-me a deixar que a menina seja trocada por uma adulta insensível. Atiro bravamente minhas luvas contra a amargura, saboreando de antemão a vitória. E, acaso, se a natureza me presenteia com um arco-íris em meio à estrada, não considero o risco do ridículo: paro e deixo que as cores me contagiem. Quem sabe eu não brinco com o tempo e volto a ser criança na próxima primavera!