quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O terço de contas peroladas

 
Imagem disponível neste link.
 


Há na madrugada um ruído de avião a cortar os ares. Nesta noite de silêncios, em que não ouço grilos e que meus até então constantes soluços não se manifestaram, percebo tão claramente que amores têm fim, mas o estar com as próprias sensações é para todo o sempre.

O corpo sob o lençol banhado pela luz da cabeceira ainda acesa, apesar do relógio já entregue ao passar das horas. Há um braço que se estica para fora da cama como a trilhar no vácuo do quarto a rota da aeronave. O pouso já garantido no exato momento em que a mão adentra a bolsa sobre a mesa de cabeceira. Não me foi difícil retirar de dentro dela o terço. 

Que de mais proveitoso uma mulher de preceitos religiosos, sozinha, poderia fazer, quando os olhos insones já não vertem lágrimas, a não ser rezar? Correm as ave-marias atrás do pai-nosso e, na verbosidade autômata, vem a palavra: glória.

O pensamento rompe o palavrório decorado. Palavra bonita aquela. De pompa. E, ao mesmo tempo, podendo ser nome de pessoa. Teria meu mundo outro matiz, caso o batismo me desse a glória de um nome assim, me desse por nome Glória?

O poeta já bradara “se eu me chamasse Raimundo”... não, não era solução. Mas o desvario do pensamento já ia solto a casar-me – Glória – com o belo Fausto. “Ah, que serei eu se não puder”...

Eu não buscava soluções nem rimas. Eu tecia um mundo de flores coloridas e adereços dourados. Um casal caminhando de mãos dadas por sob uma abóbada azul escura salpicada de estrelas. As contas do rosário desprendendo-se. Eram luzes. Cresciam. Moviam-se. O céu enchia-se de aeronaves e havia uma cantilena de ave-marias enredadas até se espalhar o som de Glória. Aí a garganta era como um repicar insistente de sinos: glória, glória, glória. A noite infestada de anjos...

Ó, luz! Deus, eu dormi! Sonhei. Só pela manhã descubro a luz acesa. Percebo também a bolsa caída, os pertences esparramados próximos à cama. Dentro da bolsa, um único objeto, retido sei lá como: o terço de contas peroladas.