quarta-feira, 15 de abril de 2015

Algo de confidencial e biográfico em torno de alguns vocativos

 
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Havia um livro de Língua Portuguesa com o qual estudei na sexta série, de cujo nome não me recordo mais. Havia nele um exercício que trazia as frases iniciais de Iracema, célebre romance de José de Alencar. Esse livro didático não me ensinou a gostar de textos literários. Minha paixão pela literatura vem de outras fontes. O exercício pedia para identificar a função do termo “verdes mares” na frase “Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas.

  Devo dizer que a linguagem e os fatos linguísticos me fascinaram desde a infância, não pelos livros didáticos nem pelas metodologias de ensino, talvez pelos professores, talvez por gosto aos estudos, sejam eles relativos a qualquer área do conhecimento – Sempre fui excelente aluna! – talvez pelas circunstâncias da vida que me permitiam a escola como única recreação, talvez até pela proibição de falar o que se pensa e o que se quer (Na minha família criança devia permanecer quieta: a ditadura do país repetida irrefletida e inconscientemente pelos pais...).

  Não quero falar de livro didático, de escola nem de infância. Quero falar de vocativos! Daqueles de significado especial, que, quando vêm a memória resgatam uma história inteira. Como, quando da coqueluche lá pelos quatro anos (sim, a doença!). Rememoro, com nitidez, o rosto dos primos tortos com quem brincava na casa de uma tia torta, cunhada do tio, e muitas outras crianças da primeira infância, irmãos, vizinhos, primos. Uma criança mais nova, que não conseguia pronunciar meu nome, chamava-me Maia. Foi um vocativo temporário, da transitoriedade do aprimoramento da fala, com poucos seguidores e muita intervenção dos corretores.

  Baixinha, que sempre fui, convivo com vocativo de mais normalidade: o diminutivo Marcinha, com papel duplo de vocativo e apelido, ao qual se somou a variante Marcita. Até hoje o mais recorrente, o que não perdeu a validade, o que revela as relações de amizade conquistadas e mantidas vida afora, o que uso quando converso comigo mesma.

  Tive um amigo saxofonista que também me interpelava por meio do diminutivo. Porém, chamava-me Marcela. Dizia ele que o sufixo –ela lhe soava mais preeminente. Eu atribuía a preferência por seu estilo mais erudito, até que uma vez ele me revelou que eu era parecida com uma de suas ex-namoradas que tinha tal nome. Perdeu a graça. Deixei de ver como forma rara e privativa.

  Outro amigo, mais recente, amigo virtual, chamou-me Malu, junção das letras iniciais de meu nome e sobrenome. Esse tornou-se chamamento exclusivo, até porque nunca dito nem ouvido por mais ninguém.

  Há outro amigo que registra sempre “querida Márcia”. Soa delicado, até carinhoso. No entanto, fica em mim a sensação de distância. É meio como entender as diferenças de uso entre “tu” e “você” no plano das relações sociodiscursivas. Nas tantas incongruências com que me construo, gosto do fato de ser inteligente, mas não gosto de ver meu lado intelectual se destacando quando o imperativo deveria ser a emoção.

  Os vocativos eleitos pelos filhos variam conforme as fases e os humores. Uns transitórios também. Outros disfarçando segundas intenções: compra, compra!; desculpa!; não fui bem na prova! Ah, filhos da atualidade!... Vai daí eu ouvir, às vezes, mammy, mainha, mããããe, manhêêê.

  Quanto aos alunos, o “professora”, ou “prof”, como tem sido in hoc tempore, desconsidero nesta minha narrativa, visto que direcionados a toda a classe e não especificamente a mim. Aqui, faço um interstício para citar um apelido repleto de exclusividade e que me faz vaidosa (no bom sentido do termo, embora possivelmente com sua dose de pecado): oráculo. Sobre esse não vou dar detalhes. Vou me limitar a espetar um alfinete no balão da vaidade.

  Criança, amiga, mãe, profissional, as polivalências do cotidiano...

  Reservo o vocativo mais doce para a confidência final. Um dia alguém me chamou “minha flor”. Esse, o vocativo que me autorizaria à paráfrase de José de Alencar: Serenai, Márcia. Serenai, minha flor! Mas tenho sido apenas o barco manso que se deixa tragar, sem reação, pela selvagem flor das águas.
   
   

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Nessa parede surdemuda

 
Eu não quero cantar
pra ninguém a canção
que eu fiz pra você
que eu guardei pra você*




        Há quem tenha uma canção que faz lembrar. Eu não canto. Desconheço juras de amor. Não carrego eternidades. Há quem cante no chuveiro. Eu, porém...

       Transformo um azulejo em lousa. Escrevo seu nome. Escrevo meu nome. Escrevo qualquer coisa que me vem ao pensamento e instantaneamente escorre para a ponta dos dedos.

        Confiro o desenho a água, para ter certeza da forma redonda e perfeita da grafia. Nessa parede surdemuda, só faço letra cursiva. Nada que sugira imprensa, que é para manter segredo do registro.

       O banheiro inteiro mergulhado no vapor d’água. Eu não tenho uma escrita de romance, mas fica ali a fantasia, o que, de algum modo, é história. Inacabada. Nem começada. Não há uma canção.

      Eu sei que você tece melodias. Imagino seus dedos no violão. É mais real que a tinta incolor com que preencho os espaços da minha lousazulejo. Porque as notas que você dedilha alcançam o vento que caminha da sua janela para outros horizontes.

     Eu escuto um dó, um sol perdido, e as minhas luas derretem-se em lágrimas. Da mesma matéria com que fabrico letras durante meu banho. Não é para mim que você canta. Eu fico apenas com seu nome, lançado repetidas vezes nessa parede que não vai para outros horizontes.

       Desligo o chuveiro. Enxugo meu corpo. Não há mais letras por hoje, todas diluídas, dissolvidas no que fica de molhado no ambiente. Eu saio, já seca, de você, de meus devaneios...

       Mas há um som que vem pela janela e me deixa úmida. Há em mim dedos inquietos que tentam coletar a canção que eu não fiz para você, a canção que você não fez para mim...
    
    
* Fragmento de letra da música "Nada pra mim", de Ana Carolina.