sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A poesia das noites



       Agora são exatamente 16:04’39”. Estou no meu quarto ouvindo música. Tá uma chuvarada danada aqui.

Estou em meu quarto, sim, mas o relógio marca horário diverso. É bem mais tarde este meu momento de escrita. Não ouço música. O eco da solidão é o único fenômeno sonoro da madrugada neste ambiente. As frases iniciais não são minhas. Capturo-as de minha leitura, para usá-las como mote. Transcrevo-as apenas. Apenas?! Há tanto envolvido nessa transcrição! Mãos e olhos nervosos, coração agitado e... paredes vazias, cama vazia.

Também não chove aqui. Pelo contrário. A fumaça das queimadas tem me feito passar terríveis apuros. A dor da mata se consumindo em chamas, a dor da ignorância e da falta de ações preventivas, a dor da impotência, e a dor física da secura instalada no nariz, na boca, na garganta. Há ainda as cinzas que, trazidas pelo vento, cobrem o chão da área, dando-me desgastante trabalho.

Ouvi rumores de uma greve dos correios. O fato não me abala. Todas as contas estão em débito automático. Qualquer outra correspondência não haveria mesmo de chegar. Há muito os correios já decidiram fazer-me greve.

Assisti certa vez, não sei se em filme, se em novela, a uma cena em que a personagem ateava fogo a correspondências antigas. Ato inválido para minha memória! A deleção de objetos concretos em nada pode modificá-la. Ademais, minha sensibilidade física à fumaça é algo que me acompanha desde tempos remotos. Impossível qualquer rebelião feita a fagulhas.

Igualada ao relógio, busco números. Aqueles que me obrigam a levantar, a sair de casa, a voltar para casa. O ritual de chegada é sempre o mesmo. Antes de abrir a porta, confiro a caixa de correios. Um minuto – de devaneio, fantasia, esperança – imediatamente suplantado por outro minuto – algoz. Diz a sabedoria que o tempo não passa, a vida é que se esvai.

As cartas que leio hoje são as que já li outrora, amareladas e rotas, mas ainda com os verbos no tempo presente. Mudam-se as circunstâncias interpretativas. As palavras escritas, estas jamais se alteram. Enlevada pelo dom de Mnemosine, faço delas a música que me falta. É a poesia das noites em que não consigo compor.