sábado, 29 de maio de 2010

O vendedor de abobrinhas

   
Conheci um mercador. Vende abobrinhas no Ceasa. Não sei por que me ocorreu a palavra mercador. Parece tão sem uso. Soou-me arcaica. Ação inconsciente talvez, para aproximar-me das minhas ilusões românticas, embora o vendedor nada trouxesse de semelhança com um príncipe encantado. O viço dos frutos, entretanto, era em meus olhos um tapete mágico, pelo matiz do conjunto, ali estendido, em convite ao pé do ouvido para um recanto de mil e uma noites. Eu bem que poderia aceitar o passeio, atravessar toda a cidade, não fosse a aspereza das caixas dos vegetais a me lembrar que o milagre da varinha de condão se faz com hora marcada.

A fala do vendedor é história e seu produto é regalo que me satisfaz. Imagino todas essas saborosas abobrinhas se autopromovendo em banquete de verduras falantes diante de um gramático puritano, daqueles que não sentem cosquinhas de forma alguma e torcem o nariz para uma xicrinha de café. Tão gostoso falar abobrinha! Decerto isso me chamou a atenção naquele moço de voz firme a anunciar seu produto. Nenhuma relação inconsciente com meu mundo de contos de fadas.

Adoro as armadilhas do idioma! Proparoxítonas são pronúncia melodiosa somente na voz de Chico Buarque. Porque o meu mercador – ai! deem-me licença, preciso desse possessivo! – porque o meu mercador não se sentou pra descansar como se fosse sábado, não comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe, não bebeu nem soluçou como se fosse um náufrago, não dançou nem gargalhou como se ouvisse música. Ele apenas chamava a freguesia em linguagem tão cotidiana quanto seu marketing. O som inconfundível de quem verbaliza com maestria o processo da síncope, pois já viveu na pele a aventura de atravessar um corguinho.

Vejam bem a que recanto me trouxe esse tapete mágico! Ah! Se todas essas abobrinhas se transformassem em mandrágoras! Minha voz não tem tanta força perlocutória. Não sou princesa; tampouco sou bruxa. Meu mercador é um homem comum, no exercício de sua profissão. Eu... eu vendo histórias. Em mercado algum. Para comprador algum. Não, não as vendo. Distribuo-as livremente pelo espaço, enquanto atravesso a cidade, apesar da aspereza das milhões de caixas-casas que não as acolhem. Óbvio, não são abobrinhas. E isso causa uma distância enorme entre mim e aquele vendedor.


Um tapete mágico qualquer para um mercador especial (ou um tapete mágico especial para um mercador qualquer)
   

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Vícios

  
Fim de tarde. Hoje eu não bebi. Falo coisas assim sem sentido, mas estou embriagada de mim mesma. Aliás, não tenho o vício da bebida, assim como não tenho qualquer outro vício, além deste de ser uma eterna peregrina. São essas viagens, eu sei, que me deixam desnorteada, que fazem quem me vê de passo trôpego imaginar-se dividindo a calçada com uma extática inconsequente.

Leio, em gesto autômato, o neon do célebre bar e, em decorrência nada automática – o pensamento e suas costuras enviesadas –, lembro-me de um livro lido há alguns meses*. "Bar e lar têm como que uma complementaridade ambígua, às vezes contraditória (...). Sem bar (...) não existiria a poesia de Vinicius de Moraes.” Sem lar não existiria a minha poesia. É desse lar, chão do qual germina o que não foi dito, o que não era para ser dito, que me distancio.

Viajar virou um vício, mas não substitui este outro, o de poetar. Menti, não é mesmo? Disse que era só um o meu vício. Não, na verdade, não. Há ainda, preso, recalcado, vício muito maior e bem mais prejudicial: esse amor que me consome por dentro e, em movimento dissonante, imposto quase que como castigo, me torna cada vez mais bela na aparência.

Tenho a pele uniforme e aveludada. Não vou falar de pêssegos (clichê?!). Gosto mesmo é de morangos suculentos, o caldo escorrendo pelo queixo, mas a superfície não tem a suavidade necessária à comparação. Trago a luz das estrelas nos olhos. O sorriso alvo de flor branca de lótus – um indiano disse-me isso uma vez. Na geografia das curvas acentuadas, meu corpo é a poesia que não posso lhe oferecer.

Há bancos na calçada. Um deles acolhe a vertigem que, insolente, tenta roubar-me a verticalidade. Em meio a tanto a admirar, enxergo apenas a euforia dos pombos diante de migalhas ali atiradas. Bar e lar confundindo-se na negação da diferença fonética. Uma enxurrada de arrulhos. Qualquer idioma para esses versos viandantes que não conseguem calar a ânsia desse corpo meu-não-seu sempre sóbrio. Fim de tarde... Para os pombos.


* BEIRÃO, Nirlando. Original – Histórias de um bar comum. São Paulo: DBA, 2008.
  

sábado, 15 de maio de 2010

Rosas

    
"Rosa é a flor feminina que se dá toda e tanto, que para ela só resta a alegria de se ter dado."
(Clarice Lispector)
    

Não é época de rosas. Mas segredos são para qualquer época. Guardados, revelados... o perfume está ali. Parece estranho esse início de texto? Poético, piegas? Não me importa agora o adjetivo que lhe venha a ser atribuído. Estou nostálgica. Daí embriagar-me no perfume das rosas que se abrem, espalhando risonha e impiedosamente meus segredos para o mundo. O céu azul e limpo é vastidão e, às vezes, desamparo demais.

Vai lá um sorriso de criança, os cabelos dançando ao vento, os pés ligeiros por entre as pedras do jardim. As mãozinhas ávidas colhem todos os meus segredos, dão a eles o colo da proteção, o carinho dos afagos, a quentura do olhar. Estou nostálgica. Daí embriagar-me desse hálito e aceitar o ninho desses braços.

Qual a fonte de onde se originou tamanha sensação de nostalgia? Ela, a roseira, estampada numa foto que acabo de rever. Dirão, talvez, se está a rever fotos, é sinal de que a nostalgia já havia se instalado anteriormente. No entanto, juro, não! O álbum de fotos foi tirado da gaveta (pasmem) porque precisava localizar a foto de um bolo de festa (pasmem mais ainda!) feito por mim. Não tenho grandes dotes culinários, mas tenho uma receita de bolo fofíssimo, saborosíssimo, que faz sucesso na família. E tenho a delicadeza da simplicidade de transformar glacê, coco ralado e confeitos coloridos em decoração artística.

A foto do bolo não achei. Mas a roseira carregada estampava-se à minha frente. Flores tão vivas, oferecendo-se à admiração, implorando por admiração! Vem meu filho e pede “mãe, faz arroz doce?”. Vou. A foto me acompanha, depositada em local próximo ao fogão. Meu corpo é também rosa aberta, entregando-se ao espírito maternal. Tantas outras urgências! Qual delas, entretanto, compensará o lambuzado sorriso pueril que traduz a cumplicidade entre talher e queixo?

Não é época de rosas. Pelo menos dessas que florescem naturalmente nas roseiras, sem necessidade de grande atenção, crescendo a esmo. Escorreguei na arte culinária, caí no jardim, meus segredos voaram. Retornaram, porém, entrelaçados em um buquê de dedinhos, respingados de arroz doce, exalando histórias...

Quem, nesse momento, dá colo a quem? Daí embriagar-me nesse rio que escorre pelos vãos dos dedos. Meus olhos se liquefazem à imagem da roseira em foto, devidamente abrigada entre as páginas do álbum. Guardo os segredos na gaveta. Entrego-me à nostalgia.




Um jardim qualquer de uma casa não tão qualquer em uma cidadezinha qualquer (Acervo pessoal)

        

sábado, 8 de maio de 2010

As janelas se expandem para além da torre...

   
Abro a bolsa. Não encontro meu pendrive. É noite e não posso voltar para buscá-lo. Sem o arquivo necessário para o término de um serviço já iniciado... de repente é como se me sentisse vazia. Ligo a TV, novela das oito, e a torre Eiffel me aparece na tela. Outro dia, acho que desta mesma semana, era a torre de Belém.

Nem uma nem outra carregam histórias de românticas princesas. Aliás, creio que torres sejam obra antiga de engenharia cuja origem em nada remete a contos de fadas. Mas não consigo fugir à correlação estabelecida inconscientemente pelo meu pensamento. Perdoe-me a ignorância, Mr. Freud, se pensamento e inconsciência forem coisas incongruentes. A verdade é que vejo torres, penso em amores. A Psicanálise há de explicar.

Talvez para livrar-me dessa simbiose semântica e mostrar-me mais racional, dirijo-me à estante em busca de um livro de símbolos*. Encontro clara referência à função defensiva de tal obra arquitetônica. Encontro também uma alusão à presunção humana, simbolizada, sobretudo, pela torre de Babel, na aspereza das palavras ascensão e ambição. Para meu conforto, porém, eis que leio quase ao fim do verbete a expressão de meus pensamentos: “Na arte, a figura da Castidade aparece às vezes numa torre, como ocorre com as donzelas em situação angustiante dos contos de fadas”.

Afetada pela imagem televisiva, afetada pela leitura. O vazio, agora preenchido pelo tumulto do pensar, da imaginação. As janelas se expandem para além da torre. Como é bom que esqueças o pendrive! exclama a voz que se sente liberta.


* TRESIDDER, Jack. O grande livro dos símbolos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
     

Torre de Belém (Portugal) - Acervo pessoal
    
     

sábado, 1 de maio de 2010

Os quereres do ontem e do hoje

   
Por trás dos véus impostos pelas relações sociais, escondo minha subjetividade de mulher absolutamente romântica, cujo coração se faz cofre para o segredo de um grande amor. O vento, moleque abusado, vez ou outra me trai, coloca à mostra, qualquer que seja, um fragmento do que deveria, por princípio, ser apenas esconderijo. Escapam-me, assim, fugidios, por uma janela aberta, alguns pensamentos, alguns quereres.

Tenho predileções tão comuns, aparentemente... tão inusitadas, às vezes. Por exemplo, gosto de nomes que contenham dígrafos vocálicos, duas letras num único som, sem obstáculos. Gosto de andar de mãos dadas. Gosto de corpos lânguidos sob a luz do sol nascente, que se insinua pela vidraça. Gosto desse vento, varrendo pela janela as frestas do oculto. Quereres!... Histórias!...

No meu tempo de vai-e-vem entre o real, os sonhos e as lembranças, vejo-o de novo. Entra na sala. Sorrateiro, de camisa preta, observador. Aquele brilho lacrimoso no olhar, que lhe conferia um semblante contemplativo. Nada diferente de quando ele entrou na minha vida. História antiga que mistura ingenuidade e desejo.

Foi assim que ele entrou na minha vida: um nome, aquele do meu gosto, de amplitude vocálica. Depois um rosto, um sorriso lindo, um par de olhos que, não fosse eu ainda tão inocente e de pouca leitura à época, diria, deixam a gente comovida como o diabo! E um pedido de ajuda. Ajudei. Uma ajuda ridícula, claro. Ele não precisava da minha ajuda. Suas hábeis mãos já eram, naquela idade, suficientemente autônomas para a construção. O pedido foi sua primeira arma de sedução. Crianças também sabem ser sedutoras. Aprendi a amar assim, na crença de estar ajudando.

Agora, ali, ainda à beira da porta da sala, ele tira a camisa. O peito nu é convite para o desejo reprimido em meus, em seus olhos. O beijo, vontade e mácula de toda uma vida, aflorou, para, logo a seguir, murchar nos lábios. O corpo moreno fosse inteiro um foco de raios ultravioleta sobre minha pele branca e não queimaria tanto! Necessário fechar os olhos para voltar a enxergar.

Houve, um dia, o entrelaçar dos dedos, aquele do meu gosto, durante uma curta caminhada, de tamanho exato para a descoberta de uma nova sensação tátil e para a certeza de uma cena inesquecível. O gesto desprezou qualquer pedido. As hábeis mãos já eram, por si, sua arma de sedução. Aprendi a amar assim, pelo calor do toque, pelo silêncio da carícia.

Da poltrona em que estou sentada, olho-o novamente, tomando cuidado para ser bem discreta. Não adianta. A porta da sala não oferece ângulo bom para meu disfarce. Em determinado momento, os olhares se cruzam. O ardor de sempre toma conta de mim. Fecho novamente os olhos.

Eu, criança, numa noite de casa cheia. Hora de dormir, decretou a mãe. Hora de separar?, chorou meu coração. Como explicar a vontade da menina que não quer mais ficar longe de seu amado? Algo na mulher em embrião adivinhava o sofrimento da distância constante.

Houve a hora certa para que o sol invadisse o leito de dois amantes, despertando os corpos lânguidos, aqueles do meu gosto, que antes do sono haviam se pedido em ânsia incontida. A querência que se construiu arma de sedução. Aprendi a amar assim, na expectativa de momentos tórridos, entremeados à solidão das lembranças.

Já não estou mais na poltrona. Não vejo a porta. Não o vejo sem camisa. O calor, o tempo abafado, esses véus que me encobrem, tudo me parece desconfortável. Mesmo assim, aqui nessa sala, diante da janela aberta, espero. Sei que haverá vento, aquele de que tanto gosto! Em breve.