domingo, 24 de março de 2013

pela luz dos olhos teus *

 
Imagem da internet

Verificou uma última vez se havia novas mensagens em sua caixa de correio eletrônico. Em seguida, pegou sobre a mesa os óculos escuros. Sairia para o almoço em alguns minutos. Não sabia se tinha fome. Via-se sem vontade de comer. O relógio lhe dava uma hora diferente da de seu corpo. A claridade externa atingiu seu rosto como uma lufada de ar gelado. Sentiu paralisar-lhe o nervo óptico. Ajustou rapidamente os óculos atrás das orelhas. De súbito, trazida pela claridade, veio-lhe a imagem dela. O rosto aparentemente sereno, nem alegre nem triste, e aqueles olhos cujo segredo ele não ousava decifrar.

Fosse ele dado à lírica, buscaria dizer qualquer coisa que se assemelhasse à contemplação machadiana dos olhos de ressaca de Capitu. Tivesse ele algo de freudiano e sua mente seria um pulular de interrogações tão complexas quanto a força daquelas pupilas. Ele, entretanto, limitava-se a tomar distância, sem ânimo para enfrentar o desconhecido.

Há que se observar, porém, que o desconhecido ata a vontade própria, feito profecia de oráculo. Quanto mais ele fugia da esfinge, quanto mais calava o espírito de Tirésias, tanto mais o olhar dela se materializava. A imagem tornava seu andar mais lento. Parecia-lhe que se aproximar do carro era fazê-la surgir sentada no veículo – aparição milagrosa – e ela deixaria propositalmente a mão esquerda sobre a perna, solicitando, em gesto mudo, que ele a segurasse. O toque das mãos era sempre tão bom, misto de conforto e desejo! O desejo que acabava por prender seus olhos aos dela.

Ah! Se jogar os óculos escuros ao chão e pisoteá-los esmagasse aquela visão, ele o faria, sem pensar na dor que o excesso de sol lhe causava. A dor da atitude que ele tomara dias antes lhe impingia sofrimento muito mais atroz. Como tirá-la da sua vida daquela forma, sem nenhuma explicação e, ainda pior, sem dizer a ela que estava a afastá-la? Ele continuava a mandar-lhe mensagens e a fingir que tudo corria bem. Ele se enxergava covarde, desonesto, cafajeste. Todos os pecados do mundo eram pedras que sua consciência lhe atirava, independentemente de qualquer fala bíblica de perdão.

Entrou finalmente no carro. A fome não chegara. Começou a dirigir. A cabeça em desalinho... Em movimento involuntário, as rodas do automóvel tomavam direção diferente. Ele se viu, minutos depois, na pequena rua de terra, do alto do morro, repleta de buracos que impediam sua passagem. Não havia outro jeito a não ser parar o carro. Desceu. Olhou para o barranco que o separava do resto da cidade. As casas todas a sua frente eram só janelas, todas elas escuras, cegas. Puxavam-no para baixo. Ondas, os olhos dela, a arrastar-lhe, obrigando-o ao desvendamento do segredo. Como negar sua impotência? Como fugir do destino? Num ímpeto, atirou longe os óculos escuros.

* Originalmente título de música de Tom Jobim.
   

quinta-feira, 7 de março de 2013

Quando a páscoa não vem...

   


Era março. Sua necessidade de oração crescia, enorme. A angústia que a consumia buscou pretenso alívio nas falas decoradas do ritual religioso. Há muito as quaresmeiras floridas eram retrato perdido de seu passado. Agora, o roxo das vestes sacerdotais pintava os já desbotados quadros da via sacra em sua lembrança. 

Era ela quem caía mais uma vez, sem ninguém que a auxiliasse, que enxugasse seu rosto, que acompanhasse seu trajeto, que amenizasse sua dor. Ela era sozinha na multidão de fiéis. Alguém lavava as mãos? Talvez pior. Alguém lhe sorria. Aproximava-se dela ao fim da cerimônia. O rosto, até sereno, supunha que o cumprimento verbal apagasse todas as faltas.

Aquele encontro, em certo momento, seria mesmo inevitável. Ela voltou a sentar-se no banco de madeira escura. Queria falar-lhe sim, mas do jeito honesto que aprendera na infância: olhando-o diretamente nos olhos. Entretanto, não conseguia encará-lo. Disfarçava o foco, concentrando-se na distorção luminosa dos painéis vitrificados.

Havia nela uma grande vergonha. Sabia-se usada, enganada, roubada, traída. De seus lábios, no entanto, só um pedido: que ele a deixasse sair daquela situação com um mínimo de dignidade. O pouco proferido era quase o latim das inscrições monumentais, como se de fato fosse sua língua materna. Dolor supremus.


Ele não a confortou. O silêncio era lança a ferir-lhe o peito. As mãos dele, abaixadas, afastadas, inertes, eram os cravos da crucificação. Não, não haveria vestes resplandecentes. Apenas o canto longínquo de um galo.