terça-feira, 24 de agosto de 2010

Aquele amor


Eu te amo ele dizia a ela e ela sabia que era verdade. Ele falava do perfume dela, gosto tanto! Ele a amava muito. Tanto amor que não cabia dentro dele. Isso lhe causava muito receio. Mas ela ria quando, no auge do gozo, ele falava um palavrão. Ele dizia até me esqueço que estou com uma dama. Aí ele mudava o vocabulário e amava mais ainda a cara de satisfação que ela fazia na entrega.


Um dia, depois de fazer amor, ele lhe perguntou se ela não sentia vontade de lhe bater. Ela disse não, por quê? você sente? Ele lhe confessou que sim. Ela riu e o beijou e se ofereceu de novo, inteira. Ele a amou, amou, amou...


Depois ele mergulhou em silêncio profundo. E não soube o que fazer com aquele grande amor. E foi se afastando...


Naquela noite ele entrou no bar. Ele nunca imaginou que a encontraria naquele lugar. Ela, depois de tanta água nos olhos, ainda mais linda! Falava coisas que denunciavam as marcas de sua ausência. Eu te amo ele disse a ela e ela soube que era verdade. Ela sabia que ele nunca deixaria de amá-la. Ela não falou nada. Saíram dali juntos. Silêncio profundo no pouco espaço daquele carro.


Silêncio também no leito que devolveu o sorriso a ela e que despertou nele aquela vontade novamente. Ela entendeu, beijou-o, deixou acontecer.


Horas depois, quando ele acordou, não sabia explicar onde estava. Por entre os vãos da grade via o rosto dela, amava a cara de satisfação que a fazia ainda mais linda, e enxugava a água de seus olhos. Tanta! De repente isso lhe causou muito receio. Viu o lençol, sentiu o perfume dela. Chegou o lençol ao rosto, foi enrolando, apertando. A imagem dela mais próxima. Eu te amo tanto!...


Alguém teve a ideia de enterrá-los na mesma cova. Aquele amor era pra sempre.


Cruz por Petr Kratochvil

terça-feira, 17 de agosto de 2010

O orvalho da lua



A luapor Bobby Mikul

Permita-me, leitor, que inicie meu texto com uma advertência. Na realidade, vou até abusar dessa permissão. Farei duas advertências. Sei que, ao fim das contas, é quase trabalho inútil. Vão as tais, porém, traduzindo, em linhas, o meu pensamento. Só leia este texto caso seu desejo de se tornar astronauta ainda soe forte no momento em que, pueril e louco, procura por vestígios líquidos nas crateras de outro corpo celeste. Só leia este texto caso esteja preparado, herói, para – elmo , escudo e armadura de terceira era – enfrentar o solo nu e misterioso habitado pelo dragão de Jorge.

Não se assuste, entretanto. Explico já o motivo de toda essa precaução, mesmo que, ainda assim, eu possa não me fazer compreender. Momentos antes de escrever o que aqui se segue, encerrei a leitura de uma reportagem* em cuja primeira página letras enormes veiculavam: “A nova lua é úmida, tem água, gelo e orvalho”.

A lua antiga já se fez cenário para as hieródulas dos templos gregos e para os seguidores emasculados de Cibele. A lua antiga já foi esperança de promessas de telescópio e espectometrias. A lua antiga já foi tapete para os pés de Armstrong. A lua antiga já foi cúmplice de minhas (nossas!) noites românticas, vapores a entontecer, o contraponto do brilho frio para o calor do afago...

Hoje... essa nova lua... que, pelos prazeres da ciência, se perdeu como divindade do puro prazer; essa nova lua que me vem em imagens coletadas por uma sonda espacial... Essa nova lua vem de novo, no novelo imaginário da fantasia. Faz-me falar de coisas esquecidas, perdidas no sol das horas. Apresenta-se como novo mistério. E o mistério é úmido! A água da vida no jogo do ocultamento e da revelação.

Não queira, leitor, chamar-me lunática! Seria apenas uma brincadeira semântica. Não queira também classificar meu texto com base nas categorias racionais em que aprisionaram sua forma de pensar o mundo. Tempo que se escoaria em vão.

Deixe apenas que eu fale assim, que eu siga assim, na minha condição feminina de intercalar fases. Que eu, desejosa de eclipses, seja ora crescente, ora minguante! E que, entre os estados sóbrio e ébrio da minha frivolidade, eu sinta o poder das marés como que a inundar-me com o orvalho da lua, a velha-nova úmida lua!

* Revista Planeta - Agosto/2010 
    

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Samba-canção


Um vidro. É o que separa a vida que vai aqui dentro da vida que vai ali fora. Fecho o livro que leio, história de um mundo diferente que não se recria em mim, mas somente ali, do outro lado da janela. Levanto-me. Prendo a cortina. Constato sem entusiasmo que o céu é azul. Como talvez nunca fora. Essa constatação faz doer ainda mais o pequenino trapo de coração.

O céu é muito mais azul que os olhos teus. Resolvo que preciso ouvir uma música. Um tango que seja. Um samba-canção... E a voz de Ney Matogrosso toma conta do ambiente: Se outro amor em meu quarto bater eu não vou atender* .

Muito mais que um vidro é o que separa a vida que vai aqui dentro da vida que vai ali fora. A história que criei, que não é para ser lida. A história que começa no exato momento em que teus olhos se fecharam. Porque a história de antes, esta trazia a tua assinatura também. O céu lá fora não devia ser azul. Nunca mais.

Um dia o céu e tua alegria eram uma só carne. E minha mão fazia movimentos no ar, flanava... buscando, pelo tato, reter o que a visão transformava em cor. Um dia a música era outra. E nela os reflexos do sol descortinavam qualquer sombra atrás da vidraça.

Houve um momento, porém, que a ti não bastou a solidez dos móveis. Amanheceste cismando com a fluidez da decoração. Tua alegria deixou de ser carne. Minha mão desconheceu o ar.

Sei. Eu não devia ser tão triste. Mas a janela... na verdade ali está o mistério que me imobiliza. Esse vidro, inevitável! Por que o céu insiste em continuar azul do outro lado?



(*) De cigarro em cigarro, composição de Luiz Bonfá, gravada por Nora Ney (1953). Regravação de Ney Matogrosso (“Beijo bandido”, 2009).


domingo, 1 de agosto de 2010

ao amargo do pé impotente...

     
Nascera sob o signo de câncer. Não que levasse a sério o que diz a astrologia. Mas aquele signo... Quanto de significação pode ocultar uma face da palavra...

Aquele caranguejo parecia não sair de seu pé. Pior: seu pé já era um caranguejo, carcomido pela ferida, não se deslocava mais. Fincara ali. Ali fizera seu esconderijo. Ali dilacerava seu corpo, surdamente espalhando-se, já atingia a medula. O pé já não existia; existiria outra coisa?


Que imagem agora se deformaria ante os olhos estarrecidos do pequeno animal? Mais uma vez era necessário retroceder.
Pensou em Ana. Será que ela lhe reconhecia tamanha impotência?

O trem ameaçou parar. E se ela saltasse por ali mesmo, qualquer estação desconhecida. Cumprir a sina de caminhar de ré. Entretanto, o pé doente não lhe animava o gesto de levantar. Viu algumas pessoas descerem na pequena estação. Viu outras tantas preencherem os lugares que mal se esvaziavam. Só seu vazio permaneceu.


Em que Ana pensaria agora?


Tirou o pacote de biscoito da bolsa. Comeu alguns, sem sentir-lhes o sabor. Sua boca sabia somente ao amargo do pé impotente, do pé falseante. Definitivamente Ana não poderia ajudá-la. Como desistir, no entanto?


O pacote de biscoitos voltou silencioso ao embrulho amarfanhado, misturado aos apetrechos que a bolsa feminina abrigava. Se ao menos ela chorasse... poderia descobrir naquele labirinto de mão um lencinho branco. Quem sabe assim a delicadeza do bordado amenizasse o peso da carga. Os ombros suportam o mundo, os ombros suportam aquela bolsa, os ombros suportariam sua decisão de fugir? Continuemos...