quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Para outras dores


Trabalho sobre imagem disponível neste link.


A errância do pensamento era no tão somente mesmo da solidão. Ela varria o chão da sala. Espanava as prateleiras da estante. Que tanto nas partilera, comadre? aumenta o trabalho. A lembrança da fala da vizinha levou-a a esboçar um breve sorriso logo desmanchado ao sentir doerem-lhe os mínimos músculos ante a irrisória contração. Ainda lhe causavam estranheza as particularidades do falar local. Não lhe parecia estar ali há mais de década. Tirar a sujeira dos objetos era tarefa fácil. O problema era lidar com o encardido das gentes, não esse de pele poeirenta, craquenta, mas aquele da alma. Veio-lhe na mente a voz do pai em sua desinocente ignorância: quem faz uma coisa dessa não pode ser filho de Deus.

Era preciso, com mais vigor, espanar o acre das últimas horas. Impingir à mente um algo mais que aquela cena desassossegante. Entretanto, não havia como deitar calda de açúcar por sobre a rudeza, a arrogância, a violência. Poder de dissolução e esquecência era dado a palavra, a atitude alguma. Nem que a loucura a tomasse por completo, num vento virado, condenando-a à sina de vagar a esmo o resto de seus dias pelo sem-fim dos prados castigados de seca e sol.

Sentiu novamente o latejar de um músculo, quando, em gesto descuidado, afastou da fronte uma mecha de cabelos que insistia em lhe tirar a visão. Fossem os fios displicentes, fosse o esbarrar na face, alguma ponta daquela dor trouxe-lhe à memória um pente da infância deixado fora do lugar e a humilhante exigência de, filho após filho, levá-lo ao lugar correto. Naquela época havia um medo terrível de escuro e de mãe. Mas havia as brincadeiras – nuvem leve! Vacina havia uma ou outra. As doenças da infância curavam-se todas com repouso e chá de folhas da horta. Para outras dores, usava-se mertiolate e, se não bastasse, quando casar sara. Sara? O quê?

Por que, nos momentos em que se quer afastar o sofrimento, só se consegue multiplicá-lo ainda mais? Haveria no mundo pessoas predestinadas ao autodilaceramento? Seria esse próprio predestinar-se uma força motriz a atrair os golpes insanos de qualquer imbecil que se julgava qualificado a agressor?

O relógio mostrava-se impiedoso. Os minutos corriam, tanto mais o piso se embranquecia e o rosto se arroxeava. A limpeza acontecia alheia às questões, às dúvidas, às fragmentadas lembranças e às lágrimas.
 
O som da campainha tirou-a do automatismo e das divagações. De repente, um lampejo de crueldade perpassou-lhe os olhos. Desejava uma notícia de morte. Para sua decepção, todavia, era apenas o encarregado da leitura do consumo mensal de energia elétrica. Uma dedicada e acabrunhada dona de casa, com movimentos nervosos de mão a esconder o olho esquerdo, abriu-lhe o portão.
   

terça-feira, 20 de agosto de 2013

De conto em conto, todas as contas



“A vida é um colar. (...)
São sempre tantas as missangas.”
(Mia Couto)



“E viveram felizes para sempre”. Começa-se a felicidade; acaba-se a história. É assim em quase todos os contos de fadas. Não quero essa felicidade; presumo que você também não a quer. Ansiamos por histórias, várias, inesquecíveis, entrelaçando-se, criando um livro infindo que só a morte põe término. Põe?

Foi naquele tempo em que Deus ainda criava. O mundo não era uma capa de revista. Eu já conhecia lágrima e você, coberto de razão áurea, adivinhava o pentagrama pitagórico. Eu não sabia nada do que era possível. Até acontecer. E aconteceu em uma noite de lua cheia. Eu vi suas mãos. Eu vi seus olhos. Os ombros não, que era para manter distância, descuidar-se do amparo. A insegurança deveria ser presença constante. Bastou um olhar, bastou um beijo: estava perdido o paraíso. A partir daquele instante a lua, feito moldura para o rosto, passou a brilhar ainda mais. Prata! daquela de cobiça, que pede mais, pede ouro, diamante, uma profusão de pérolas a enredar-se.

Vai daí, puxa-se um fio intermediário e estávamos nós, de repente, no salão de baile do castelo. Eu olhei para meu vestido azul. Parecia que aquele tom não combinava com a cor de seus olhos. Havia um espectro de espadas a esconder seu sonho de esgrimista. O desespero disfarçava-se em sorrisos discretos. Caminhamos até a balaustrada. Não havia mais céu para o ar necessário. Foi por não saber dizer que eu disse tanto. Você, confuso, ofereceu-me caramelos. A voz até ficou retida, mas... a boca cheirando a mel! O que mais contar? Bastou um beijo. A boca tão açúcar, branca, de perfiladas contas!

Como lascas agudas, as raízes da trama perfuraram o tempo e, diligentemente, avançaram para a terra nova. Era já outro continente. Suas mãos ávidas de outros desejos. O bolso do sobretudo de casimira abrigava uma bússola. Embora pendessem livros aos cachos na biblioteca, a você só interessavam os atlas. Havia mais o que descobrir? Cores novas e novas palavras. Um lencinho branco ficou no porto. O beijo esbarrou na promessa. Bastou a saudade. No corpo, o vestido preto fazia segredo da esperança. Eu descobri que nunca mais também podia ser para sempre. No entanto, eis a urdidura do tecido por entre os galões...

Atados pela narrativa, desconhecemos a interrupção. Há um jardim que contorna os limites do arranha-céu e estende-se até as ruínas do império fenício. A Babilônia é uma figura na parede (oh!) e não há quarto que sirva de baluarte ao nosso amor. Há, porém, um beijo, que, de há tanto parado no ar, gerou urgências. Ninguém precisa de magia. Basta essa linha invisível, condutora de ventos auspiciosos, a espantar as sombras e os silêncios da existência...

Que a vida é um colar!