quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A agulha

 



Bordava roupas de cama, panos de prato, toalhas de mesa. Eram linhas e agulhas que perpassavam as tramas do caprichado enxoval. Não era, entretanto, pensando em seus núbios sonhos de moça que bordava. O tecido marcado, por si só, era sua satisfação. Agradava-lhe vê-lo não mais branco, intacto. Era como o prazer da folha preenchida a tinta. Para o leitor, tantas palavras! Para o analfabeto, o espanto impingido pelo enigma.

Colecionava os elogios recebidos. Às vezes, cuspia um deles sobre agulha ingrata que ousasse lhe ferir. O sangue estancava em segundos!

Aconteceu, porém, um dia, de perder o domínio sobre a agulha. Enamorara-se. Os olhos foram tomados de devaneios. O corpo e o coração, crivados de êxtase... Passou a bordar sonhos pela madrugada, sorvetes à tarde e audácias ao cair da noite.  Tão mais o tecido se preenchia, mais era a bem-aventurança! Acordava desejando as marcas impressas pelos ventos da fortuna.

Manhã veio, no entanto, sem nenhuma alvíssara. Na mão da mãe via-se o requinte do papel opalino que ostentava luxuoso monograma. Na mão firme da mãe, diferente da sua, que subitamente ignorava qualquer rigidez... Com que então, o amor que julgara só seu estava predestinado a outros lençóis, de bordadeira nem tão afamada?

De ímpeto, dirigiu-se ao quarto, apossou-se dos apetrechos de costura. Ali, a agulha fez-se arma. Deixou que o sangue brotado escorresse. A marca no tecido foi outra.  Mesmo assim, entranhada nos fios.

Linhos, cambraias, cânhamos... Aos poucos, o novo bordado lançava mágoas escarlates sobre os cortes. Os tecidos vivificavam-se. Havia quem nada entendesse. Fofocas e condenações substituíram os elogios. Ela mais e mais caía de amores pelo novo enxoval.