quarta-feira, 18 de abril de 2012

O batom




Colocou toda a força do punho no ato de esfregar aquele colarinho. O tanque coalhado de camisas brancas. E aquela dor interminável no estômago. Se, pelo menos, a dor se fosse com a sujeira retirada das roupas. O que ia junto, entretanto, era a pele frágil dos dedos, já enrugada de umidade.

O tempo escorria hermético e indecifrável como uma bula de remédio. Todos os segundos condensados num punhado de drágeas ingeridas a cada oito horas. Embrulhava-as nas necessidades dos filhos, nos interesses do marido, no vai e vem do cartão de ponto da fábrica, nos afazeres domésticos...

A cunhada lhe trouxera aquela revista, lê aí, uma reportagem que explica direitinho esse seu problema no estômago. Não lera, claro. O que realmente lhe interessara fora a cor intensa do batom da mulher da capa. O corpo magro e bem torneado, em contraposição ao seu, pouco lhe significara. Mas o batom, a boca tão bem pintada...

Com aquela boca era possível desbravar outros universos. Quem se negaria a ouvi-la quando os lábios, luminosos, se entreabrissem? O reflexo da luz rubra gritando ao horizonte: esta dor não é nada! Tantos outros dissabores presos em bolhas de sabão! Mas resplandeciam arco-íris em cada globo diminuto.

O seu desejo transportado inteiro para a estampa colorida do batom. A boca era a porta do mundo.

De repente baixou os olhos sentindo que a ardência do estômago se deslocava para a ponta da mão. No colarinho um ponto ia se tingindo, flamejante. Pela espuma, entrevia-se a pele rompida no ímpeto da esfregação. Piscou as pálpebras três, quatro vezes, buscando nitidez. A cor reluzia num crescente.

Levantou a mão e, sem receio, na mesma toada do lavar de roupas, foi esfregando o dedo por toda a extensão da boca.