domingo, 29 de setembro de 2013

As lições de minha avó


  Foto: acervo pessoal


     Eu tinha vontade de ter ouvido minha avó contar a história da vida dela. Queria ter conhecido cada detalhe do que as tias – só algumas – contam, por alto e sem muito conhecimento, de que a vó fugiu de casa para se casar com o vô, militar, mulato, pobre, sem morada fixa, mudando de cidade a cada novo destacamento. Palmilharam ele, a avó, os filhos e toda a mobília por várias estradas do sul destas Minas. O cortejo de filhos ia aumentando, uns morreram, ficaram por aí enterrados os anjinhos, túmulos talvez jamais visitados.

Minha avó nunca abriu a boca para contar essas histórias aos netos nem para reclamar das circunstâncias. De suas dores, a gente só sabia – quem para isso tinha sensibilidade – pelas outras coisas que ela dizia. Eu ouvia, umas me doíam, até mesmo pela pouca compreensão característica da idade.

Foi, por exemplo, quando nasceu um novo priminho, seu neto provavelmente de número 28, numa época em que ainda não havia as previsões certeiras dos ultrassons. Eu lá pelos 15 anos. A notícia chegou por telefone. Ela, calma como sempre, após desligar o aparelho, fico muito feliz quando ganho mais um neto, mas fico mais feliz ainda ao saber que é menino, pois mulher, por melhor que lhe seja a vida, terá seus pedacinhos. Custei a dar sentido a esses pedacinhos.

De feita, ela na cama há mais de ano, a esperança de se livrar da sonda nasogástrica já se exaurindo, eu sentada ao seu lado. Fazia-o sempre que possível, apesar do trabalho e do estudo. Ela pedia que segurasse sua mão. Ficava longos minutos na mesma posição, olhando para o alto do guarda-roupa, onde havia algumas caixas. Depois falava alguma coisa, um comentário qualquer, está precisando tirar a poeira daquelas coisas ali no alto, nem deveriam estar ali. Ela pedia para mudar de lado, alegando cansaço, mas pega minha mão de novo. Então ela me disse você seria ótima enfermeira, minha neta, você tem muita paciência e serenidade. Na hora só pensei Deus me livre de ver sangue e dor. Custei a entender que ela, de fato, não falava de futuro profissional, mas elogiava minhas qualidades.

Dela, quando ainda tinha saúde, recebi, de um modo particular, bastante prático, de quem já sofreu privações intensas, algumas lições de economia. Havia o orgulho de descascar as batatas, tirando as cascas mais fininhas, muita gente desperdiça porque não consegue fazer assim. Até aprendi. Outras lições, no entanto, não segui. Já elas me seguem. Não consigo me desfazer de um saquinho de papel, desses que embrulham o pão, sem me lembrar de que ela os juntava para trocá-los no moinho de fubá: 100 saquinhos destes, dizia, ajeitando-os com as mãos, um a um, eles trocam por um quilo de fubá. E a gente subia a rua até o moinho e voltava um quarto de hora depois com o ingrediente para sua culinária mais apreciada: a broa de fubá da vovó. Hoje dobro todos os saquinhos do mesmo jeito que ela fazia, para, só depois, colocá-los junto aos materiais recicláveis que devidamente separo para a coleta seletiva. Dói-me muito ver os catadores passando e levando somente latinhas e garrafas pet – são mais lucrativas. As embalagens de papel ficam ali, não raro, espalhadas na calçada. Meu coração se espalha também...

Minha avó colecionava tijolos, que ela encontrava jogados na rua ou em restos de construção. Com eles construiu o muro da garagem de sua casa. Era uma das mulheres mais ativas que conheci. A festa de Natal ou de Ano Novo podia terminar às 2, 3 horas da manhã, às 5 ela já estava de pé. A hora de deitar não altera a hora de levantar, afirmava. É nisso que me fio quando preciso trabalhar até mais tarde ou quando velo a doença de um filho ou a morte de um tio. A energia vem, forçada pelas circunstâncias e inspirada na avozinha.

No dia em que a doença, que a consumiria durante oito anos, bateu em seu portão, ela estava justamente a pintá-lo, ela mesma, ignorando o mal estar que não a ignorou. Naquele dia, eu soube que nunca mais haveria a possibilidade de ouvir as histórias que me interessavam, mas comecei a ouvir a lição que viria repetidamente: Não importam os entreveros da vida. Há pessoas que nascem para ser cuidadas; outras, para ser cuidadoras.
   

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

O labirinto





Era feriado e pus-me a andar pela praça de minha cidade. Cidade pequena, mas de praça extensa, em que se cabiam pernas e mais pernas e sonhos e mais sonhos. Os meus, não por menos, também andavam por lá, mais especificamente, àquele momento, pelo coreto. Ali, o ponto mais alto, só ficando abaixo das torres da igreja. Eu não poderia, porém, subir nas torres da igreja. O coreto era acessível – para as pernas, para os sonhos.

Eu olhava ora os capitéis, ora as muretas, ora o além que o horizonte me oferecia. Entre um e outro repouso da visão, era o ouvido a captar a algazarra de bandos de moleques que corriam para os campos ou de bandos de maritacas que manchavam de verde o azul do céu. Eu me percebia só sentidos, esquecendo-me propositadamente, de que pudesse haver algum motivo, ínfimo que fosse, para atiçar-me a necessidade de reflexão. Era, pois, dia de qualquer coisa que transformava aquelas vinte quatro horas em dia de nada. A tarde era minha, sem acontecimento que se interpusesse entre mim e ela.

Acontece que o sentido, feito criança teimosa, não raro insiste em ornamentar-se de fantasia e memória. Um cheiro de perfume, um toque de seda por sobre a pele... e vêm os anjos a desfilar. Da memória, saltam as palavras e tudo o mais de símbolo na paisagem e de pergaminho na ponta da pena que vai à mão. Da fantasia, erige-se o casebre que, de fato, nunca se construiu e, talvez por isso, nunca viesse a ser habitado pelo moço bonito que visita meus sonhos em todas as madrugadas, pontualmente às quatro da manhã.

A casinha ficava ao pé da serra. Tinha janelas e portas azuis. No sofá da sala é que o casal se sentava, bem no finzinho da tarde, a esperar pelo clarão da lua. Nesse meio tempo, o silêncio pungente saía a passear com as formigas, em correição. Desengavetavam-se os afetos e transportavam-se todos eles para o abraço, para o beijo. O cubículo era luz, apenas! Mas, um sopro, e eis que a tênue nuvem... onde? tempestade!

Foi pela imaginação e pela lembrança que eu não voei do coreto. Os pés se fincaram ao chão de cimento e quartzito. Os pés criaram paredes e recantos. Aproximava-se a hora da comemoração solene – dia de quê, afinal? Vozes outras, sons outros... o burburinho não me fazia reconhecer o que havia para mais que dois passos. O que se fizera dos degraus que conduziam à saída? Prisão, quando se pode caminhar, mas não se pode mudar o espaço?

Festa na praça. Indiferente para mim se é celebração de bodas ou execução em guilhotina. Já não são longínquos os urros amedrontadores. Não há fio que me conduza à saída do labirinto.