quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Dar-te-ei ainda, depois de tudo, um copo de cólera*


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Naquele dia, ela desprezou a sobremesa. Não queria nada doce. Às vezes é fácil abdicar das pequenas felicidades para manter o azedume necessário que o cotidiano pede.

Naquele dia, ela desprezou o sorriso. Não havia nada que merecesse uma boca de dentes brancos. Nem mesmo se houvesse consulta marcada no dentista ou uma reviravolta que a tornasse garota-propaganda de creme dental.

Naquela dia, ela desprezou o gingado do corpo em resposta a qualquer acorde dançante. Na sisudez em que se colocara, dispensou mesmo o som automotivo, o rádio e a televisão. Até o celular ficara condenado à falta de toque, no silencioso.

Naquele dia, ela desprezou os fonemas adocicados de seu sotaque e até os fonemas ásperos do balconista sempre insatisfeito da loja de secos e molhados em que costumava comprar uma garrafa de vinho para as noites sepulcrais do marido.

Naquele dia, ela desprezou os diálogos ora afáveis ora ardentes dos romances com que se distraía no fim da tarde, terminados o serviço e o banho diários. Que os livros alimentassem de ilusão e personagens as paredes escuras e insossas da estante…

Naquele dia... ele só desprezou a falta de alma estampada no rosto da mulher. Comeu, bebeu, gargalhou, lambuzou-se dela. Não se deu conta de que dançava na poça de seu próprio sangue até ler o título impresso na capa do livro cujas folhas esvoaçavam próximas à taça de vinho.


(* Homenagem a Raduan Nassar, autor de, entre outros livros, "Um copo de cólera" e ganhador do Prêmio Camões 2016)