quarta-feira, 23 de julho de 2014

Receita de médico


Adaptação de foto disponível neste link


Doutor, não me passe esse remédio, não vou tomá-lo. Sei que me foge a memória, mas não para as coisas. O que esqueço são apenas os nomes: o nome do pai, o nome da rosa, o nome da fome.

Eu me lembro criança, lá pelos onze anos. Eu vestia meu vestido vermelho de manguinhas bufantes, de tecido fino e bordado com linha, flores brancas. Eu me sentia princesa, apesar de não haver um belo sapatinho. Houvesse-o e talvez eu me sentisse deusa. Tudo era providencial, na verdade. Eu sempre me necessitei humana. Domingo, eu ia para a igreja com meu vestido vermelho e chinelas havaianas.

Havia uma loja, vendia calçados e roupas. Eu passava em frente àquela loja e parava a admirar a vitrine. Desejava tanto uma daquelas belas sandálias! Mulher tem paixão por sapatos desde pequena, sobretudo quando não os pode comprar. Não me ocorre mais o nome da loja, mas me lembro de que uma das filhas do dono era minha professora de Artes. Lembro-me do nome dela. Lembro-me do nome de todas as minhas professoras, dos professores também. Não é estranho, doutor, que desses nomes eu nunca me esqueça?

Eu falava do vestido, aquele vermelho, que me tornava princesa. Isso foi mais ou menos à época de uma copa de futebol. Os meninos completavam álbuns de figurinhas das seleções. Eu tinha algumas amigas e adorava quando a chuva despencava vorazmente bem justo no momento de voltarmos para casa ao término das aulas. A água da enxurrada banhando as pernas era como o mar, que eu só conheceria uns quinze anos depois. Eu me sentia feliz e livre quando a roupa pingava em consonância com o céu. Corpo e alma encharcados.

Está vendo, doutor, que minha memória é boa? que não necessito de remédio algum? Só me preciso mesmo humana. Do que me esqueço é o que o vento precisa varrer, à força maior de desvestir as ilusões. É que deveriam sobrar apenas os vazios dos álbuns, os jogos perdidos, a falta mesma do troféu. É que deveria sobrar apenas aquele vestido vermelho, que nem me cabe mais, que agora deixaria o corpo tão exposto quanto os pés. É assim que o mar há de me encontrar quando eu for lavar os olhos e o estômago.

Remédio precisa quem ainda tem sonhos. Eu tenho reminiscências apenas, e elas, muitas vezes, carecem de nome. Basta-lhes um resíduo de pretérito, feito as flores brancas bordadas, que já se desmancham, que já se desprendem do tecido. Caídas pela calçada, mais lhes vale um pé nu. Pisa com ferida de dor menor. Ou quem sabe a correnteza da chuva forte, que possa arrastá-las para um campo verde. Dar-lhes a sensação de vida real em vez de arte anônima de costureira.

Não, não é algo que evite os esquecimentos que vim buscar. Honestamente, não. Preciso é de um sonho novo, rodopiar feito pião, a saia vermelha girando, girando enquanto subo a rua da igreja. É este o meu momento de baile. Sou princesa. Sou humana. De pés descalços.
   

domingo, 6 de julho de 2014

Ah! Um guarda-chuva?





        Havia pequenas frestas de céu azul por entre as nuvens. Em outras ocasiões, o céu assim se fechando em cinza, lhe causaria grande aflição. No entanto, as pouquíssimas chuvas dos últimos três meses já haviam deixado fortes marcas de ressequimento na paisagem a ponto de qualquer gotejamento ser ansiado em profundo. Olhar aqueles verdes já em palha era lembrar que o tempo também lhe ia levando a juventude, que seu rosto, a cada dia, trazia um novo vinco, que a sequidão tinha algo de um amargo irreversível... Aquelas pesadas nuvens que se iam ajuntando eram alegria.

        De há muito a água que escorria vinha para solver outras poeiras e deixava-lhe a pele em sal. As nuvens agora acenavam com outro paladar, para curtir assim, como se bebesse o mais nobre vinho de castas especiais!

        Engraçado é que suas lembranças de chuva até então não lhe eram muito agradáveis.

        Era o temporal de quando ainda adolescente, que destelhara o barracão em que sua família morava. Da noite para o dia, o quase nada que havia, tudo perdido, e, na sequência, meses de dolorosa reconstrução marcando o cenário no qual pauperrimamente ela debutava.

        Era também o sonho romântico da jovem romântica que a habitava, o sonho nunca realizado de que um dia surgisse de algum além um moço que, em máximo êxtase de paixão por ela, andasse por marquises e rodopiasse em poças d’água a imitar Gene Kelly. Ela havia nascido para as agruras da vida, para os espinhos. Era forte, destemida, inteligente. Não lhe coube o cor-de-rosa delicado que a fizesse princesa aos olhos de um cavalheiro cuja alma estivesse banhada no mesmo romantismo que ela escondia até de si mesma.

        Era ainda a enchente que, impiedosa, devastaria sua casa, alguns anos depois, fazendo-a – em meio a filhos, fraldas e mamadeiras – agarrar-se a qualquer subterfúgio que lhe desse o direito de resgatar um pouco de sua memória. A lama na gaveta do criado-mudo tornando invisível e ilegível parte do que lhe era sagrado. Que se recuperassem, no mínimo, algumas fotos...

        Definitivamente, suas lembranças de chuva... não eram para ser lembradas. Apague-as à borracha a irreversibilidade do tempo! Ah, que nessas ocasiões o tempo é traste e vence a si próprio em crueldade! Não apaga.

        Mas, eis que o céu insiste em se mostrar agonizantemente lindo. Em soluços, de uma felicidade que não lhe era íntima, correu a fechar as janelas. E cantarolava, misturando sua voz ao som dos pingos que grossamente caíam:

“come on with the rain
have a smile on my face.
I'll walk down the lane
with a happy refrain
just singin’
singin’ in the rain”