sexta-feira, 27 de agosto de 2021

O feijão e o



Imagem disponível neste link.


Passo um tempo sem escrever. Não é o papel que rejeita a palavra. É a palavra que não quer ser semente no chão que não se sabe fértil. Fértil é palavra paroxítona terminada em L, pede acento. O chão pede assentamento. Agricultura de subsistência, de resistência, pro cerrado não se ir de todo embora. Eu repito o poeta: catar feijão se limita com escrever. E escrevo!


Eu escrevi num passado, quando se vendia o país do futuro. Comprei feijões sem muita esperança de que fossem mágicos. Se o mar não está para peixe, o chão desta terra não está para feijão que mata a fome do próprio povo. Desalentado, o povo caminha. Alguns, em busca da terra não prometida, mas tão sonhada. Outros vendendo o feijão da janta para comprar o almoço.

Virou novela o feijão e o sonho de Orígenes. Nasceu novela o feijão maravilha. E cantando saímos a botar água no feijão. Foi quando comecei a escrever o presente, entendendo o país do futuro. Eu escrevendo escrevendo escrevendo...

De repente cessou.

A linha do novelo

............................................

A linha da escrita

..........................................................

A linha de produção... do futuro.

...........................................................................

Vi gente se agarrando a outras verdades. Agarrei-me de novo ao Cabral – o poeta; não o da descoberta - joga-se fora o que boiar. Boiou. Quem jogou fora? De repente, eu não escrevo. Eu ouço e choro. Tampo os ouvidos, e mais ainda choro.

Eu escreverei algum dia, talvez dia nenhum, talvez todos os dias, talvez até agora: oxítonas terminadas em L não são acentuadas. Só há terra para a semente da discórdia? Eu escrevi: na fome, o feijão vale mais que o fuzil. Na língua, o fuzil é a pedra daquele feijão mal catado: um grão imastigável, de quebrar dente.



quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Dar-te-ei ainda, depois de tudo, um copo de cólera*


Link para esta imagem


Naquele dia, ela desprezou a sobremesa. Não queria nada doce. Às vezes é fácil abdicar das pequenas felicidades para manter o azedume necessário que o cotidiano pede.

Naquele dia, ela desprezou o sorriso. Não havia nada que merecesse uma boca de dentes brancos. Nem mesmo se houvesse consulta marcada no dentista ou uma reviravolta que a tornasse garota-propaganda de creme dental.

Naquela dia, ela desprezou o gingado do corpo em resposta a qualquer acorde dançante. Na sisudez em que se colocara, dispensou mesmo o som automotivo, o rádio e a televisão. Até o celular ficara condenado à falta de toque, no silencioso.

Naquele dia, ela desprezou os fonemas adocicados de seu sotaque e até os fonemas ásperos do balconista sempre insatisfeito da loja de secos e molhados em que costumava comprar uma garrafa de vinho para as noites sepulcrais do marido.

Naquele dia, ela desprezou os diálogos ora afáveis ora ardentes dos romances com que se distraía no fim da tarde, terminados o serviço e o banho diários. Que os livros alimentassem de ilusão e personagens as paredes escuras e insossas da estante…

Naquele dia... ele só desprezou a falta de alma estampada no rosto da mulher. Comeu, bebeu, gargalhou, lambuzou-se dela. Não se deu conta de que dançava na poça de seu próprio sangue até ler o título impresso na capa do livro cujas folhas esvoaçavam próximas à taça de vinho.


(* Homenagem a Raduan Nassar, autor de, entre outros livros, "Um copo de cólera" e ganhador do Prêmio Camões 2016)

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Limpei o armário

   

Link para esta imagem


Eu estava ali perdida para sempre ou, pelo menos, até que se acendesse uma luz. A liberdade não se inscrevia nas irregularidades do muro. Nem as utopias. A luz não se acendeu.

Eu era ainda criança e tinha medo exagerado de escuro. A menina, cabelos cacheados e vestido curto de alças finas, nada podia contra o medo, nem contra o escuro, nem contra a alta muralha erguida em seu entorno. De modo que o muro me impediria indefinidamente de transpor o mundo.

Ali, no todo-o-sempre antes de o sol surgir, não surgiram os fantasmas temidos. Tampouco qualquer som que tornasse as pernas mais aceleradas que o coração. Nenhum ruído externo.

É possível acostumar-se ao escuro.

Os fantasmas vieram bem depois, num tempo de demolições e desembaraços, em que o temor era já outro e eu precisava de promessas. A um deles permiti que fizesse morada definitiva em meu armário. Encobri alguns sonhos. Construí algumas ilusões. Acostumei-me. 

Um dia, porém, descobri que fantasma que não causa medo não tem muita utilidade. Descobri mais: que as inutilidades só são bem-vindas quando não geram lágrimas.

Limpei o armário. Lá no fundo, despida de afetações, minha imagem.

A luz esperada...

quinta-feira, 11 de junho de 2015

dos amores que (não) se fazem eternos




Foi assim que tudo começou. No início pareceu-me que seria simples. Eu não consegui, de imediato, visualizar a estrondosa dimensão daquele ato. Não consegui por uma única razão: não pensei. Apenas acreditei. E me atirei inteira – corpo, alma, coração! Eu sentia a força dos batimentos cardíacos, das contrações musculares, e, ao mesmo tempo, certa leveza, como se folha eu fosse a flanar sob o impulso da brisa.

    Eu tinha consciência somente do seu ritmo, consonante ao meu. Eu fantasiei que o relógio marcaria 18 horas para todo o sempre. Fantasiei também que só haveria dor de exaustão, quando o corpo não mais acompanhasse o frenesi da alma e insistisse na vontade do sono. Para essa dor, eu me aninharia em seu peito e você acobertaria seu rosto em meus cabelos.

    Ah! Mas a simplicidade é só desejo de amantes! De repente a fome se instalou – não esta: a do desejo – mas a fome mecânica de estômagos. Fome de arroz e feijão, que gera panelas sobre o fogão e talheres sujos. De repente não éramos mais dois seres envolvidos na magia do amor. Havia uma casa, havia objetos, havia contas a pagar...

    Nós nos perdemos. Não tecemos o fio do “felizes para sempre” para além do beijo e do amor. Não soubemos conciliar o funcionamento do leito com o funcionamento do mundo. A dor foi lágrima na minha e na sua face. Carregamos, com o poeta, o lema dos amores que não se fazem eternos, mas infinitos enquanto duram. Decidimos colecionar lembranças. 

    Foi assim que continuamos atentos um ao outro. Contentes nas lembranças, nas reminiscências, na busca de notícias, mensagens e breves encontros. Percebemos, neste novo trajeto, que nunca mais seríamos sós. Seria sempre você em mim e eu em você.

    Não fantasiei mais nada. Os ponteiros do relógio caminhavam para nós dois.
   
    

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Algo de confidencial e biográfico em torno de alguns vocativos

 
Imagem disponível neste link


Havia um livro de Língua Portuguesa com o qual estudei na sexta série, de cujo nome não me recordo mais. Havia nele um exercício que trazia as frases iniciais de Iracema, célebre romance de José de Alencar. Esse livro didático não me ensinou a gostar de textos literários. Minha paixão pela literatura vem de outras fontes. O exercício pedia para identificar a função do termo “verdes mares” na frase “Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas.

  Devo dizer que a linguagem e os fatos linguísticos me fascinaram desde a infância, não pelos livros didáticos nem pelas metodologias de ensino, talvez pelos professores, talvez por gosto aos estudos, sejam eles relativos a qualquer área do conhecimento – Sempre fui excelente aluna! – talvez pelas circunstâncias da vida que me permitiam a escola como única recreação, talvez até pela proibição de falar o que se pensa e o que se quer (Na minha família criança devia permanecer quieta: a ditadura do país repetida irrefletida e inconscientemente pelos pais...).

  Não quero falar de livro didático, de escola nem de infância. Quero falar de vocativos! Daqueles de significado especial, que, quando vêm a memória resgatam uma história inteira. Como, quando da coqueluche lá pelos quatro anos (sim, a doença!). Rememoro, com nitidez, o rosto dos primos tortos com quem brincava na casa de uma tia torta, cunhada do tio, e muitas outras crianças da primeira infância, irmãos, vizinhos, primos. Uma criança mais nova, que não conseguia pronunciar meu nome, chamava-me Maia. Foi um vocativo temporário, da transitoriedade do aprimoramento da fala, com poucos seguidores e muita intervenção dos corretores.

  Baixinha, que sempre fui, convivo com vocativo de mais normalidade: o diminutivo Marcinha, com papel duplo de vocativo e apelido, ao qual se somou a variante Marcita. Até hoje o mais recorrente, o que não perdeu a validade, o que revela as relações de amizade conquistadas e mantidas vida afora, o que uso quando converso comigo mesma.

  Tive um amigo saxofonista que também me interpelava por meio do diminutivo. Porém, chamava-me Marcela. Dizia ele que o sufixo –ela lhe soava mais preeminente. Eu atribuía a preferência por seu estilo mais erudito, até que uma vez ele me revelou que eu era parecida com uma de suas ex-namoradas que tinha tal nome. Perdeu a graça. Deixei de ver como forma rara e privativa.

  Outro amigo, mais recente, amigo virtual, chamou-me Malu, junção das letras iniciais de meu nome e sobrenome. Esse tornou-se chamamento exclusivo, até porque nunca dito nem ouvido por mais ninguém.

  Há outro amigo que registra sempre “querida Márcia”. Soa delicado, até carinhoso. No entanto, fica em mim a sensação de distância. É meio como entender as diferenças de uso entre “tu” e “você” no plano das relações sociodiscursivas. Nas tantas incongruências com que me construo, gosto do fato de ser inteligente, mas não gosto de ver meu lado intelectual se destacando quando o imperativo deveria ser a emoção.

  Os vocativos eleitos pelos filhos variam conforme as fases e os humores. Uns transitórios também. Outros disfarçando segundas intenções: compra, compra!; desculpa!; não fui bem na prova! Ah, filhos da atualidade!... Vai daí eu ouvir, às vezes, mammy, mainha, mããããe, manhêêê.

  Quanto aos alunos, o “professora”, ou “prof”, como tem sido in hoc tempore, desconsidero nesta minha narrativa, visto que direcionados a toda a classe e não especificamente a mim. Aqui, faço um interstício para citar um apelido repleto de exclusividade e que me faz vaidosa (no bom sentido do termo, embora possivelmente com sua dose de pecado): oráculo. Sobre esse não vou dar detalhes. Vou me limitar a espetar um alfinete no balão da vaidade.

  Criança, amiga, mãe, profissional, as polivalências do cotidiano...

  Reservo o vocativo mais doce para a confidência final. Um dia alguém me chamou “minha flor”. Esse, o vocativo que me autorizaria à paráfrase de José de Alencar: Serenai, Márcia. Serenai, minha flor! Mas tenho sido apenas o barco manso que se deixa tragar, sem reação, pela selvagem flor das águas.
   
   

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Nessa parede surdemuda

 
Eu não quero cantar
pra ninguém a canção
que eu fiz pra você
que eu guardei pra você*




        Há quem tenha uma canção que faz lembrar. Eu não canto. Desconheço juras de amor. Não carrego eternidades. Há quem cante no chuveiro. Eu, porém...

       Transformo um azulejo em lousa. Escrevo seu nome. Escrevo meu nome. Escrevo qualquer coisa que me vem ao pensamento e instantaneamente escorre para a ponta dos dedos.

        Confiro o desenho a água, para ter certeza da forma redonda e perfeita da grafia. Nessa parede surdemuda, só faço letra cursiva. Nada que sugira imprensa, que é para manter segredo do registro.

       O banheiro inteiro mergulhado no vapor d’água. Eu não tenho uma escrita de romance, mas fica ali a fantasia, o que, de algum modo, é história. Inacabada. Nem começada. Não há uma canção.

      Eu sei que você tece melodias. Imagino seus dedos no violão. É mais real que a tinta incolor com que preencho os espaços da minha lousazulejo. Porque as notas que você dedilha alcançam o vento que caminha da sua janela para outros horizontes.

     Eu escuto um dó, um sol perdido, e as minhas luas derretem-se em lágrimas. Da mesma matéria com que fabrico letras durante meu banho. Não é para mim que você canta. Eu fico apenas com seu nome, lançado repetidas vezes nessa parede que não vai para outros horizontes.

       Desligo o chuveiro. Enxugo meu corpo. Não há mais letras por hoje, todas diluídas, dissolvidas no que fica de molhado no ambiente. Eu saio, já seca, de você, de meus devaneios...

       Mas há um som que vem pela janela e me deixa úmida. Há em mim dedos inquietos que tentam coletar a canção que eu não fiz para você, a canção que você não fez para mim...
    
    
* Fragmento de letra da música "Nada pra mim", de Ana Carolina.
    
     

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O terço de contas peroladas

 
Imagem disponível neste link.
 


Há na madrugada um ruído de avião a cortar os ares. Nesta noite de silêncios, em que não ouço grilos e que meus até então constantes soluços não se manifestaram, percebo tão claramente que amores têm fim, mas o estar com as próprias sensações é para todo o sempre.

O corpo sob o lençol banhado pela luz da cabeceira ainda acesa, apesar do relógio já entregue ao passar das horas. Há um braço que se estica para fora da cama como a trilhar no vácuo do quarto a rota da aeronave. O pouso já garantido no exato momento em que a mão adentra a bolsa sobre a mesa de cabeceira. Não me foi difícil retirar de dentro dela o terço. 

Que de mais proveitoso uma mulher de preceitos religiosos, sozinha, poderia fazer, quando os olhos insones já não vertem lágrimas, a não ser rezar? Correm as ave-marias atrás do pai-nosso e, na verbosidade autômata, vem a palavra: glória.

O pensamento rompe o palavrório decorado. Palavra bonita aquela. De pompa. E, ao mesmo tempo, podendo ser nome de pessoa. Teria meu mundo outro matiz, caso o batismo me desse a glória de um nome assim, me desse por nome Glória?

O poeta já bradara “se eu me chamasse Raimundo”... não, não era solução. Mas o desvario do pensamento já ia solto a casar-me – Glória – com o belo Fausto. “Ah, que serei eu se não puder”...

Eu não buscava soluções nem rimas. Eu tecia um mundo de flores coloridas e adereços dourados. Um casal caminhando de mãos dadas por sob uma abóbada azul escura salpicada de estrelas. As contas do rosário desprendendo-se. Eram luzes. Cresciam. Moviam-se. O céu enchia-se de aeronaves e havia uma cantilena de ave-marias enredadas até se espalhar o som de Glória. Aí a garganta era como um repicar insistente de sinos: glória, glória, glória. A noite infestada de anjos...

Ó, luz! Deus, eu dormi! Sonhei. Só pela manhã descubro a luz acesa. Percebo também a bolsa caída, os pertences esparramados próximos à cama. Dentro da bolsa, um único objeto, retido sei lá como: o terço de contas peroladas.
   
   

domingo, 21 de setembro de 2014

Asa sem par


Adaptação de imagem disponível neste link.



          Estou enterrando uma pessoa especial. Sim, eu tinha uma, apesar de detestar o termo. O que é especial tende a ficar guardado. Sempre quis coisas e pessoas comuns, para o dia a dia, para toda hora, sem esperar por ocasião. Mesmo assim, cultivei uma especialidade. Rara. Em tudo. Na beleza, no sentimento, na possibilidade de estar junto.

Não havia como ser diferente. Até o resplendor mais viçoso se perde, quando abafado. Com a distância constante, o sopro vital foi se extinguindo.

Estou enterrando essa pessoa especial. De modo lento, doloroso, nos intervalos de sol e chuva. Esmero-me em cumprir todos os ritos de que o luto necessita. Vão as velas do velório. Vão as velas dos olhos. Tudo que é luz e brilho aos poucos submerge nas águas da despedida.

Desvencilhar-se é processo muitas vezes imposto. Já me tiraram tanto, induzindo-me a crer que é preciso que o antigo se vá. O caderno de poesias da infância... As amigas da adolescência... O imponente estofado de estilo clássico... Os discos de vinil... Os sonhos de amor... Aceitei. Aceito as regras. Porém, sofro. O peito dilacera-se sem testemunhas. Pro diabo essa coisa de desapego, viver com o mínimo, trocar de opinião, mudar de ares! Acaso conhece alguém as minhas intensidades?

Entretanto, é imperioso esse desfazer de agora. Dou a volta ao mundo em busca de detalhes sobre as solenidades inventadas para o momento da morte. É para chorar, beber, cobrir o corpo de preto, aprisionar-se, atirar-se na pira fúnebre?

É para fugir de mim mesma. É para enfrentar-me a mim mesma! Virar o jogo, revirar as gavetas, recriar a coreografia. 

Tem que ser assim. Devagar. Tomar a dimensão da cova de longe. Achegar-me. Deitar o olhar para dentro do buraco. Esboçar um gesto técnico, como a verificar a métrica do espaço. Caberá! Debruço-me a lançar terra, punhado por punhado, apertando-a entre os dedos, entre a tristeza, entre a desilusão, para que sumam das mãos todas as linhas, para que a história se perca no nevoado da poeira.

Tu virarás pó. Talvez eu venha a me sentir incomparavelmente só... Talvez o balé se produza mais belo, mais consonante, repaginado em asa sem par.

Já a última mão de terra. Depois é dizer fim. A derradeira, cujo poder é transformar-te para sempre em pó... Mas, justo essa, o braço, exausto de fantasiar tantas danças, não consegue completar.