Imagem disponível em http://ranchoaltavista.com.br/culinaria.htm
Um dia o irmão adoecera. Os gemidos passaram a ser ouvidos constantemente. As lágrimas da mãe tornaram-se habituais. As visitas da família – enorme! – também viraram rotina.
Se para fugir da aflição que se abatera sobre a casa... Se para sentir-se útil... Se para sentir-se notada...? O caso é que decidira fazer doces e oferecê-los aos parentes que vinham principalmente aos domingos e feriados. Oferecia-os também aos médicos, à solícita enfermeira, ao padre... aos vizinhos.
Aos poucos, foi perdendo a sensibilidade para as flores e seus perfumes. Os olhos severos e impassíveis exigiam apenas os frutos e já os viam macerados, premidos, cozidos. Sabia de olho a quantidade de açúcar a deitar sobre eles. O tempo de fogo. O doce no ponto. E, quando os gemidos e as lágrimas aumentavam, tanto mais o vigor da colher de pau. Só a massa desprendendo-se do fundo do tacho de cobre caramelava-lhe a vida.
Cuidava dos tachos como se fosse a si própria. Provavelmente até com mais afeto. Nada de azinhavre. Os tachos foram delimitando seu espaço na casa. A fama de doceira foi delimitando seu espaço na família, no mundo.
Em uma tarde de muitas jabuticabas a colher, a agonia do irmão de repente crescera. O padre veio às pressas.
Ouviu-se, momentos mais tarde, um último som lancinante. Um tio correu a tomar as providências. Os olhos da moça-doceira transformados em fios de calda de açúcar, numa cachoeira sem fim. A mãe fitou-a desconsoladamente. Caminhou até ela. Tomou-lhe das mãos a colher de pau e dirigiu-se ao tacho sobre o fogão.
Se para fugir do desatino... Se pelo domínio febril... Se por hábito de dor...? O caso é que a mãe – e ninguém mais – continuou a fazer doces naquela casa.
Fina e sutil narrativa. Adorei os "olhos transformados em fios de calda de açúcar".
ResponderExcluirOi Márcia, tão difícil na blogosfera encontrar um espaço com crônicas realmente boas, que nos envolvem e atiçam o paladar literário, tal doces feitos em tachos. Gostei, viu?!
ResponderExcluir...E eu a queixar-me por ser solitária.
ResponderExcluirLindo texto tão real, pois nesta vida encontramos muitas doceiras, costureiras, padeiros que se tornam não por opção mas para fugir ou ser notado...não olharei mais para uma fruta sem lembrar do meu egoísmo.
Íris Pereira
Ê, Márcia; as histórias doces são por vezes as mais densas e enigmáticas.
ResponderExcluirTexto tocante, querida amiga!
Olá Márcia! Desejo-lhe um fim de semana muito doce!
ResponderExcluirbeijos.
Que conto mais lindo! *-*
ResponderExcluirSensível, adorei. "Os olhos da moça-doceira transformados em fios de calda de açúcar"
ResponderExcluirhttp://entre-primos.blogspot.com/2011/05/mae.html
Márcia, parabéns pela sendibilidade do blog. Está no meu Vale conferir!
ResponderExcluirpassei apenas para espreitar e para começar a seguí-la... volto outro dia com mais calma... ou, como dizemos em Portugal, com olhos de ver!!! bjs!
ResponderExcluirEntrei hoje no seu blog e gostei do texto, muito bem escrito,muito imaginativo. Fazer doces para tentar "cortar" os amargos da vida...
ResponderExcluirVoltarei para ir lendo os outros textos.
Um abraço.