quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Sandices



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Meu bebê chorou a madrugada inteira. Não dormi tentando acalmar-lhe as lágrimas. O resto da vida, para além do ininterrupto choro, parecia ser só silêncio. Foi quando a louca que esbravejava com ninguém cortou o escuro da rua. Só eu devo ter ouvido o seu discurso de injúrias. Por um momento, cheguei a me ver tão louca quanto ela, talvez até mais. Ela mostrava a coragem que eu não tinha e isso a salvava. Minha salvação era o choro daquele bebê, já inaudível, tão longe!... eu não tinha filhos.

A vontade de ser mãe ficou no sonho. Justo eu, talhada para a casa cheia, para a cozinha cheirando a canela, para o arroz doce que cozinhava lentamente no fogão. O marido exigia os filhos que nunca chegavam. Foi para a rua. Encontrou outras mulheres, que satisfizeram seu desejo. Eu fiquei, no espaço imenso entre as paredes, condenada à solidão. Os irmãos sumiram. De pai e mãe eu já não sabia dizer. Eu nunca me casei.

A vontade do vestido branco e de entrar com o pai na igreja ficou no sonho. Eu, moça prendada, tantos primores culinários, o capricho do enxoval bordado em ponto cruz, seria para sempre solteira. A vergonha da família, o peso da família. Quem dela cuidará na velhice? Levem-na para a casa da Dasdor, há quarto sobrando, ela ajuda a cuidar dos sobrinhos, haverá arroz doce nos fins de semana. Eram os irmãos tecendo conjecturas. Seria um sobrinho o bebê que chorava madrugada afora? Nada se ouvia. Eu não tinha família.

A vontade de família era só um sonho, acalentado desde a infância. Anos de história mal contada enterrados no meu corpo de mulher. Talvez tenha sido isso que me deixara oca por dentro, sem sentimentos, sem útero, sem possibilidade de vida nova. Eu nada sabia dizer sobre meu nascimento. Filha de quem? Uma qualquer abandonada, que sobrevivera pela caridade alheia. Como chegara assim aos dias de hoje? Não sei do que me nutri. Eu desconhecia a solidez dos alimentos. Só água havia.

A vontade de água não era sonho. Meus olhos se desfaziam nas vinte e quatro horas que marcavam cada dia. Eu não dormia. E não era por tentar acalmar as lágrimas. Era para não perder nenhuma delas. Não contei a ninguém, podiam achar que eu estava louca. Eu nunca ensandecera. Coletava toda a água dos olhos para construir um rio. Era preciso aquele curso d’água. Só assim as flores se batizariam em nome do pai, do filho e do espírito santo, e a salvação se instalaria no mundo.

A vontade de salvação não era sonho. Ela fazia parte de todas as paredes da casa, ainda que ninguém mais a habitasse. Foi depois que o rio, no início apenas um olho d’água, foi se nutrindo das minas brotadas nas noites insones foi ganhando força foi rompendo os obstáculos e no denso que se tornou carregou para fora todas as pessoas. Dizem que houve uma sobrevivente. Não contem a ninguém, eu peço, mas há uma louca cuja voz corta o escuro das ruas à noite, em gritos pranteadores, por não conseguir acalmar o bebê que chora a madrugada inteira.
  

2 comentários:

  1. Desejo um FELIZ NATAL e um ANO NOVO repleto de grandes realizações.
    Que a verdadeira essência do AMOR FRATERNO esteja presente em todos os momentos.
    Grande abraço

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    1. Obrigada, Malu!
      Que seja assim para você também: muitos planos, muitas realizações!
      Um abração para você!

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