sexta-feira, 23 de abril de 2010

Sonhos, mentiras e interrogações

    
Há em mim uma busca constante, uma inquietude. Alcançar o meio termo é tarefa desastrosa. Nem tanto à terra, nem tanto ao mar! Pensei, então... quem sabe sou de natureza etérea? Mas nem aí a tal da calmaria: Hélios baniu de meu mundo onírico qualquer pretensão a Ícaro. Fiquei aqui, me fazendo Ismália. Oh, céus! Meu sonho foi... (Socorro! Não há nenhum adjetivo em língua pátria correspondente a Hades? O inferno só pode ser dantesco?)

Que fazer à falta da palavra desejada? Abandono as agruras do idioma e narro meu sonho. Alto lá! Narro nada! Descrevo. Um personagem. O que me deixou assim, tão abalada, a ponto de misturar, em um mesmo parágrafo introdutório, mitologia grega, Alphonsus de Guimarães e Dante Alighieri. Pois que o dito cujo se assemelhava à figura folclórica da caipora, dava saltos, contornando o próprio corpo com as pernas, num malabarismo descomunal, visto que – chamou-me realmente a atenção esta característica – as pernas eram curtíssimas!

Ao acordar, meu primeiro pensamento foi para minha mãe. Cena familiar. Os filhos todos juntos e o sermão. A mentira tem pernas curtas. Sabedoria materna, aos olhos – e ouvidos – da prole medrosa. Aos olhos da ciência, entretanto, na repetição do ditado popular, discurso de mãe, ignorante da biografia de Lautrec, mas poderosa em seu papel social. Pronto! Estabelecida a relação entre sonho e realidade. Só por que o princípio deste mês foi justamente primeiro de abril precisava haver tanta mentirinha de pernas curtas no meu cotidiano? E essas mentirinhas precisavam invadir meu sono, materializadas nessa figurinha horrenda?

As mentiras, não as contarei, uma vez que me refiro àquelas diminutas, as do meu pequeno mundo. As grandes, nem ouso abordá-las neste momento! Falar sobre essas pequenas mentiras seria desfiar um rosário de problemas domésticos para os quais tenho tentado piamente seguir a fórmula de “O Segredo”. Só falo sobre as coisas que quero atrair. Por favor, não fiquem curiosos! É mesmo perda de tempo.

Conto das minhas indagações, minha busca sem fim. Aquele meio termo que persigo. Aquele que não me veio nem por terra, nem por água, nem por ar. Sobrou-me a tentativa do fogo. Purifico-me nele, afastando-me desses mentirosos que querem roubar até minha tranquilidade noturna? Terei eu, ainda que inconscientemente, alguma similaridade com Joana d’Arc? Ou arranco de mim algum passado nero (assim mesmo, nenhuma grafia errônea, letra minúscula, – novamente a falta do adjetivo!) e saio ateando fogo nesses grotescos caiporas que insistem em transformar minha vida em lenda?
   

4 comentários:

  1. Um texto perturbador... E belíssimo!

    Ismália, querida Ismália, tão enlouquecida... Saudade dela.

    Deveras, seu texto perturbou minhas ideias - e não estou no dantesco 7º círculo, ainda. Ainda, não!

    Sabe, descontando minha própria loucura, aprecio o perigo e o risco. Reconheço no seu estilo algo difícil de conseguir, aliás, duas coisas magistrais: primeiro, escrever em primeira pessoa sem deixar que o texto engula o autor; e, além disso, escrever com referências.

    Da segunda consideração, não me surpreende; embora ache maravilhoso. Posto saber que você é estudiosa da literatura e naturalmente surgem as referências literárias às linhas.

    Mas o que fascina-me deveras é a sua maestria em narrar em primeira pessoa. Eu, simples leitor que apenas gosta de boa leitura, sinto-me mesmo íntimo da autora do texto; ainda que imerso na ficção, deixo-me prender pelo sentimento e reflexão do seu texto.

    Incrível, incrível!

    Veja, neste instante pensei que você poderia escrever um livro de contos e publicar virtualmente; seria fantástico para os leitores e para a própria literatura. Pense nisto, há muitos editores que publicam gratuitamente os textos virtuais. Não deixe que sua escrita extraordinária perda-se por aí, carimbe-a!

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  2. Querida Márcia, belíssimo texto, como sempre. A mentira é mesmo como a caipora: perna curta, feia e mestre em nos atormentar. Mas ainda bem que é só uma lenda. Quanto aos adjetivos, antes faltar do que sobrar. Beijos.

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  3. Esse é um texto de viagem:
    Fui de Zeus a todos os mitos imagináveis!

    Belo!!!

    Um abraço,

    Maria Maria

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  4. Márcia,
    faz dias que li esse texto, e estava pensando em um comentário bem bonito pra te escrever, mas a verdade é que até agora não achei nenhum que se compare a beleza do seu texto. Está incrível, perfeito, como diz a Giu, arrepiei quando li rsrsrs Continue assim ! Beijão.

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