quarta-feira, 26 de maio de 2010

Vícios

  
Fim de tarde. Hoje eu não bebi. Falo coisas assim sem sentido, mas estou embriagada de mim mesma. Aliás, não tenho o vício da bebida, assim como não tenho qualquer outro vício, além deste de ser uma eterna peregrina. São essas viagens, eu sei, que me deixam desnorteada, que fazem quem me vê de passo trôpego imaginar-se dividindo a calçada com uma extática inconsequente.

Leio, em gesto autômato, o neon do célebre bar e, em decorrência nada automática – o pensamento e suas costuras enviesadas –, lembro-me de um livro lido há alguns meses*. "Bar e lar têm como que uma complementaridade ambígua, às vezes contraditória (...). Sem bar (...) não existiria a poesia de Vinicius de Moraes.” Sem lar não existiria a minha poesia. É desse lar, chão do qual germina o que não foi dito, o que não era para ser dito, que me distancio.

Viajar virou um vício, mas não substitui este outro, o de poetar. Menti, não é mesmo? Disse que era só um o meu vício. Não, na verdade, não. Há ainda, preso, recalcado, vício muito maior e bem mais prejudicial: esse amor que me consome por dentro e, em movimento dissonante, imposto quase que como castigo, me torna cada vez mais bela na aparência.

Tenho a pele uniforme e aveludada. Não vou falar de pêssegos (clichê?!). Gosto mesmo é de morangos suculentos, o caldo escorrendo pelo queixo, mas a superfície não tem a suavidade necessária à comparação. Trago a luz das estrelas nos olhos. O sorriso alvo de flor branca de lótus – um indiano disse-me isso uma vez. Na geografia das curvas acentuadas, meu corpo é a poesia que não posso lhe oferecer.

Há bancos na calçada. Um deles acolhe a vertigem que, insolente, tenta roubar-me a verticalidade. Em meio a tanto a admirar, enxergo apenas a euforia dos pombos diante de migalhas ali atiradas. Bar e lar confundindo-se na negação da diferença fonética. Uma enxurrada de arrulhos. Qualquer idioma para esses versos viandantes que não conseguem calar a ânsia desse corpo meu-não-seu sempre sóbrio. Fim de tarde... Para os pombos.


* BEIRÃO, Nirlando. Original – Histórias de um bar comum. São Paulo: DBA, 2008.
  

5 comentários:

  1. Que coisa maluca. Ontem mesmo pensei em escrever um texto com esse título, falando sobre vícios. O início seria mais ou menos parecido, o final não. Mas eu gostei mais do final. Muito bom, como sempre. Um grande abraço.

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  2. O Boteco é sempre um confessionário da alma... O álcool, ou qualquer outro vício tão ou menos refinado, parece a saída de vivermos, muitas vezes, num mundo sem graça, opaco, irritantemente sóbrio. No entanto, como tudo nesta vida desgraçada, há lá também seus efeitos colaterais; de modo a ser muito tênue o limite entre o prazer de espírito e a doença... Coisas sem explicação; que poderia ser, mas não foi; que ainda pode ser, mas nunca será. Atribua-se ao imponderável, não é mesmo?

    Ótimo texto o teu, parabéns!

    Abraço,

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  3. Vício lembra tudo aquilo extasiava o povo da antiguidade. O texto rompe com esse vício superficial que as pessoas têm de se entregar com facilidade. Me sinto estimulada a buscar coisas mais profundas, como faziam as mulheres romanas bebendo vinho.
    Lembro um verso de Drummond: O vício não destruirá a vida, o homem (tenho esperança) liquidará o vício. Gostei muito de como escreveu o texto. Concordo com o comentário acima: Muito bom, como sempre.

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  4. Obrigada, Bruna, Ricardo e Fernanda, pelo entusiasmo com que comentam meus textos. O incentivo de vocês tem sido importante neste momento de minha trajetória, carregado de decisões.
    Beijos!!!

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  5. Seu blog é lindo, começando pelo papel de parede que já é um poema. Os textos, então!

    Beijos de cá,

    Maria Maria

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