quinta-feira, 8 de julho de 2010

O poço dos desejos


Morava em um lugarzinho quando eu tinha 15 anos. Era bem deste jeito: na porta da sala daquela casinha havia uma cisterna. Acabamento rude, buraco cavado artesanalmente. Um sufoco para se descerem aquelas manilhas! Só lá no final do lote, um portãozinho, na cerca de bambu, acenava para a rua de terra. Antes dele, o varal cheio de roupas. Trabalho exaustivo do sarilho subindo baldes d’água até que as roupas alcançassem esse destino.

Eu sonhava com casas em que a porta da sala se abrisse para um jardim, um gramado, flores, rosas... e pedras decorativas. Eu sairia pisando um pé em cada pedra e chegaria ao portão. Minha mãe, quando eu era ainda mais criança, falava em festas de 15 anos. Cresci sem saber o que era o tal “debutar”. Palavra feia essa também, não?

Um dia apareceu lá minha fada madrinha, invisível até para mim. Fato é que a cisterna se transformou em poço dos desejos e o príncipe encantado segurou minha mão. Sentados diante da ausência de jardim, a querência nos olhos, a promessa silenciosa de amor eterno, daquele que prescinde do sapatinho de cristal.

Há muito já não lanço a corda ao poço nem ergo baldes pela força manual. Para as roupas, a máquina de lavar. Hoje, olho para a casa em que moro. O jardim é minúsculo, mas existe. A casa é fruto de trabalho árduo. Desculpe-me, leitor, se pensou “Príncipes encantados não existem. Está vendo? Ele não lhe deu um castelo.”, porque seu pensamento é muito menos real que minha fantasia. É que príncipes encantados não oferecem coisas concretas.

Os sonhos foram se transformando à medida que o avançar do tempo exigia a duplicação dos 15 anos. Um pé em cada pedra? Por vezes os dois pés em uma única pedra. Momentos até em que eram os pés sob as pedras. Nas madrugadas insones, entretanto, a água dos olhos são respingos da fonte dos desejos e, na superfície líquida, vê-se ainda o reflexo das mãos entrelaçadas.

19 comentários:

  1. Lugares mágicos. Também tive um na infância. Uma fonte. Nos fundos da casa. Diziam que ali, à meia noite, Yemanjá penteava os cabelos. Várias noites perdi, olhando pela fechadura na esperança de ver a deusa. Foi meu primeiro sonho acordado e nunca mais quis dormir.

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  2. Encontrei a porta aberta e entrei!
    Gostei muito do passeio por aqui e vou voltar de certeza!

    ***
    Obrigada pela partilha e feliz fim de semana*******

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  3. Deliciosa crônica, Márcia!
    Eu que sou um mineiro de anedota, sempre fui mais de ficar matutando no quintal do que de buscar um jardim para olhar o mundo exterior. A casa em que nasci, em Leopoldina, tinha um imenso quintal e não tinha jardim; o sobrado em que passei a infância toda no Rio também era assim. Talvez por isso eu não seja nostálgico: não preciso olhar para trás para me buscar, porque o que tenho de mais precioso - no fundo, literalmente - são meus quintais que trago comigo, sempre viçosos no jardim de agora.

    Beijo

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  4. Lindo texto, lembrei da minha infância, também já usei corda e balde pra retirar água do poço.
    Parabéns, gostei e por aqui vou ficando.
    Bjo carinhoso.
    Zezinha

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  5. Ah! Os jardins! Seu comentário, Tuca, me fez lembrar de Rubem Alves, mineiro que fala coisas lindas sobre jardins. É de uma crônica dele, em que ele inclusive cita Guimarães Rosa e Cecília Meireles (que eu amo!), o seguinte fragmento: "Mas um dia o inesperado aconteceu. O terreno ficou meu. O meu sonho fez amor com a terra e o jardim nasceu."
    Segue o endereço eletrônico dessa crônica:
    http://www.rubemalves.com.br/jardim.htm

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  6. Bela imagem a da infância. Aproveito para convidá-la a conhecer e seguir meu blog Morena de Pintas. abs

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  7. Conheço pouco o Rubens Alves, Márcia. Vou lá dar uma conferida. Quanto aos gênios citados, meu caso de amor é com o Guimarães. Mas - não espalhe, hem! - eu o traio muito com a Cecília...

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  8. Oi, Márcia!

    Tem SELINHO pra você no Blog da Cia. De Teatro Atemporal!

    Não deixe de pegar!

    Receba o carinho de nossa companhia!

    Clemente.

    Cia. De Teatro Atemporal.

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  9. Professora, minha sempre professora, minha infância foi tão diferente: sem poço, sem jardim, apenas uma janela que dava para o quintal de concreto. E mesmo assim tinha desejos, "um poço de desejos". Um dia, quando conheci o sítio de um parente, deparei-me com um poço abandonado, balde enferrujado, velho, descascado e uma cisterna - garanto - muito mais rude que a sua. Tive medo de olhar no fundo da cisterna, tamanha a escuridão. Dei as costas ao poço e pensei: isso não é o poço dos desejos das historinhas que ouço. E alguém me explicou que o poço dos desejos está no coração. Quanto a isso, minha querida, estou certa de que o seu poço não desapareceu. Dona de um dos maiores corações que já conheci, com certeza também é dona do mais belo poço dos desejos. Um beijo enorme. Saudade.

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  10. Lindo teu texto, gostoso de ler, leve, saudoso, engraçado, real, sonhador...
    Gostei muito.

    Grata pelo visita, estou por aqui.

    Beijo meu

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  11. Ora, ora querida moça da letras montanhosas; este é um texto fantástico - realmente, é um conto de fadas, às avessas, mas é; rs.

    Sabe, fiquei passeando pela linhas, depois observei a imagem do poço... Puxa! Lembrei de algumas pessoas do interior desta terra - muitas das quais estão já no além-túmulo. Conheci todos os homens que cavaram poços artesianos com as próprias mãos; gente tão boa e tão iluminada, tenho até saudade.

    Um beijo, querida Márcia.

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  12. Gostei do teu jeito simples de falar da vida.

    voltarei para ver o teu blog com mais atenção.

    ARFER

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  13. Foi me cutucar, olha eu aqui de novo. Comigo é assim, dona cronista predileta do meu blogroll. Seu amigo Ricardo Novais que o diga: me deu tanta corda que meus comentários já somam quase o dobro do tamanho dos dois últimos posts dele. E ele já está até íntimo de um grande amigo meu, um compositor e poeta morto há vinte anos mas ainda hoje a pessoa mais carismática que conheci.

    Bem, e cadê post novo pra eu me deliciar e reabastecer meus 17 cotovelos?

    Beijo

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  14. é sempre muito inspirardor passear por aqui!

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  15. Num papo com o Ricardo Novais, o Tuca sugeriu que ele visitasse o blog de um querido e sensibilíssimo amigo nosso lá de Beagá. Depois ele lembrou-se de você, e achamos que não poderíamos deixar de estender-lhe o convite, para não quebrar a hierarquia, afinal foi atráves deste seu blog que ficamos conhecendo o Ricardo. Paulinho, o nosso amigo, anda postando pouco, mas tem coisas lindas lá. Sugiro que você leia o texto cujo link vai a seguir, escrito logo após aquela tragédia causada pelas chuvas no Rio, Angra e Ilha Grande. Tenho certeza que vai gostar.

    http://rindodenervosoainda.blogspot.com/2010/01/lamas-da-memoria-num-ano-renascido.html

    Beijo

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  16. Vim conhecer seu blog, gostei muito mesmo, muito belo e repleto de lembranças seu texto, lembranças essas que nos levam ao passado, que sempre existirá em nossos corações.Parabéns, já sou seguidor.

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  17. Muitas moedas de ouro resplandecendo em meu poço dos desejos! Obrigada, caríssimos!

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  18. nessa madrugada insone me deliciei com essas águas...

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