segunda-feira, 11 de abril de 2011
Cinema mudo
Vem ele. De boné como sempre. Olha para mim. Às vezes não consigo entender seu olhar. E esse é um dos olhares que não entendo. O brilho apagado, pondo no rosto a angústia que a alma insiste em disfarçar. Olha para mim. Os lábios mal se movem no bom dia de soslaio. Há tanto a dizer, porém!
Pega das ferramentas e inicia um conserto desnecessário que, pelo movimento nervoso de suas mãos, se faz parecer urgente. Pode ser que peça um copo de água. Só para quebrar o silêncio. Eu fico esperando. Se o pedido não vier, o copo de água se fará oferta em minhas mãos.
Continuo ali inerte. Meus olhos, entretanto, são câmera para cada movimento dele. É o meu jeito de fazer cinema mudo, com fantasias que me preencherão o pensamento de fim de noite, à espera do sono. O ouvido na expectativa de uma provável melodia que brotará do espírito inquieto.
É assim. Ele não fala. Mas canta fragmentos de sua dor. Ou revela harmonias que traduzem seu desejo. Seu desejo sou eu. Por isso capto todas as notas. As doloridas, para alimentar minhas lágrimas de garota romântica. As sequiosas, para nutrir meus anseios de mulher apaixonada.
Estendo o copo d’água. A luz que incide sobre o líquido transparente decompõe a menina tímida e o vulcão aprisionado. É desse jeito, partida em duas, que me mantenho viva em seu universo. O trabalho que ele nunca concluirá pela inabilidade no manuseio das ferramentas. O movimento nervoso por todo seu corpo.
Nessa hora, a água tem cor, tem cheiro, tem gosto, derrama-se por todos os espaços do sentido. Ele finge outra a sede que de fato sente. Bebe toda a água. Depois olha para o copo vazio e põe no rosto todos os mistérios indecifráveis de seu silêncio. As mãos, automaticamente, voltam-se para as ferramentas.
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Agora mesmo é que eu não durmo nunca mais, Márcia, embaralhado nas sobras do copião, nas cenas de silêncio gritante cortadas pelo montador.
ResponderExcluirBeijos
Gosto muito de passear por aqui. Mas sempre silenciosa... Hoje tenho que deixar registrado! Você escreve o que a alma da gente pede e não sai... Obrigada por criar! Sucesso!
ResponderExcluirMuito bom e original esse texto, parabéns e linda semana pra você, beijos.
ResponderExcluirMaravilha!!! Gostei do título =D
ResponderExcluirE qdo essas sedes serão saciadas? Esses olhos precisam ser fechados prá que o filme seja outro!!! Lindo e triste texto.
ResponderExcluirDemonstração cabal de que uma imagem vale mil palavras. Ah, a dança dos desejos!
ResponderExcluiré saõ os desencontros do silêncio, que podem ser resolvidos com poucas palavras ou eternamente "icognotizados" por algumas palavras a mais!!!
ResponderExcluirfantástico!!!
Les silences interrogent ton âme et nourrissent ton inconscient. Tu navigues, inquiète et mélancolique sur une vague bleue, parfois agréable parfois dangereuse et tout cela te parle de la vie. Très beau texte.
ResponderExcluirJe t'embrasse amicalement
Roger Dautais
Umja sede se saciando de outra sede... Muito belo o seu texto.
ResponderExcluirObrigada pelas suas palavras.
Um beijo
Quis dizer uma sede. Peço desculpa.
ResponderExcluirBeijos
Oi, Márcia.
ResponderExcluirDei uma olhadinha no blog e ele me fez lembrar de uma grande amiga...
Vou indicar o blog dela aqui, acho que vai gostar.
http://cinquentinhas.blogspot.com
Tens muitas coisas em comum, eu acho... e isso é um elogio e tanto (pra mim), pois a Maria Luiza é uma mulher de se admirar!
Um abraço!
Nesta hora o gosto da água é mais doce do que o MEL...
ResponderExcluirMeu Deus!!!
Que texto mais suave e envolvente de se ler.
Adorei, Márcia!!!
Grande abraço
Ai.... como doi estes paredes que não se ve, somente se sente!
ResponderExcluirbelo texto, adorei este espaço.
Márcia,
ResponderExcluirGostei dessa narrativa com suas falas diretas, compreensíveis para o leitor, e outras que se encontram nos desvãos da história, apenas para quem souber entender. Parabéns.
Abraços,
Pedro.