domingo, 3 de julho de 2011

Lorem Ipsum



Tu questionas o meu silêncio. Não compreendes meu ritual de contemplação. Não vês que, quando adormeço em teus braços, a noite atravessa meu corpo. Soturna, ela rouba-me todas as palavras, até as apreendidas de outros idiomas. Depois, já serena, deposita-as uma a uma nos sonhos que, pela manhã, tu esquecerás que sonhaste. Não é a memória que te faz existir. Tu só existes porque me calo.

Eu até poderia fazer-te crer que sempre há tempo para o diálogo. Prefiro, no entanto, mostrar-te que sempre há tempo para o alimento e para o amor. A cozinha é a parte viva da casa. Panelas fumegantes e aromas vários. Eu tempero as emoções, ofereço-as a ti em pratos irrecusáveis. Mais tarde outro aposento torna-se a parte viva da casa. O vinho de apurada degustação... A iguaria ainda mais desejada...

Mas insistes.

É preciso que eu diga algo?

Se assim queres, eu digo. Falo-te de uma eternidade de angústias acumuladas na pele envelhecida. As lágrimas surgem. Inundam os sulcos cavados pelo tempo. Falo tanto! Até que estejam apagadas todas as luzes, as estrelas do céu, as estrelas do meu olhar...

Tu escutas. Vais-te fazendo outro. Lívido! O silêncio agora é teu. Passas a te conhecer em minhas palavras. Tu te afastas. Viras pó ante o vento incrédulo. Transformas-te no homem que és. Deixas de ser o meu amado.

A casa se desfaz. Escombros inertes pelos quatro cantos...
 

7 comentários:

  1. Um texto habitado pelo silêncio e pelos dias da vida.Beijos

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  2. É assim, menina, muitos não compreendem que o calar-se... o silenciar-se... o simplesmente comtemplar, faz parte de algumas pessoas... mas ainda assim insistem que digamos algo.
    Teu texto é muito belo e de uma sensibilidade maravilhosa.
    Abraços

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  3. Em sendo assim, prefiro-a silenciosa pois a realidade com que preenches o intervalo da fala é por demais devastadora.

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  4. Calada, disse tudo.
    Adoro seus escritos, Márcia. Quando os leio, fico com vergonha dos meus...rs
    Um abraço.

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  5. Lindo texto (foi genial o "Lorem Ipsum"). Fico muito emocionada, pois meu carinho por vc só aumenta. Fico cada vez mais deslumbrada com a qualidade dos seus escritos, mas mais ainda com o ser humano lindo que vc é. Bjs,
    Giuliana

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  6. Texto belíssimo... aliás, como de praxe nessa casa!
    Assim mesmo, poesia em forma de diálogo desconexo. O silêncio da casa pós partida, escombros sem vida pelos cantos.
    Tu te fostes, deixando um vazio a ser preenchido, aleatoriamente, um "lorem ipsum".
    Márcia... delícia de leitura !!!

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  7. O silêncio, Márcia, que antes era intruso aqui em meu peito, agora tem sido presença constante. Palavras que serviam antes para confortar o coração, hoje são guardadas a sete chaves esperando o momento certo de frutificarem... mas o terreno é seco, o terreno é árido e eu estou sem nenhuma vontade de cuidar da terra.

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