sexta-feira, 11 de junho de 2010

Um exercício

   





hoje vou fazer um exercício de escrever sem pontuação que é pra ver se a alma flui sem pressa sem interferência sem interrogação também vou deixar de usar a letra maiúscula pois que sem ponto sem marcação de início de frase tudo se justifica

hoje vou fazer um exercício de não falar do cotidiano que é pra ver se a alma flui atemporal universal coisa difícil esta porque não sei existir sem me delimitar sem falar do sol e das estrelas sem pensar na folhinha arrancada do calendário

hoje vou fazer um exercício de escrever bem pouquinho cortando o pensamento quando ele navega nas entremargens da distração que é pra ver se a alma perde a subjetividade e se torna algo assim previsível e sempre reconhecível

necessidade de transformação necessidade também de sensatez mas só hoje que amanhã volto ao normal tudo igual porque

não consigo refrear meu pensamento e ele já vai lá longe um barquinho revolto por entre as águas que sucumbem à força da cachoeira e o que sobra dessa queda sei lá tudo imprevisível é que de repente passa um galho me faço resgate as margens ficam para trás e o horizonte é largo ante as retinas renovadas

não consigo fechar meus olhos a esse mundo de terra-céu-luz e tudo segue o rumo de um relógio cujo ponteiro sim analógico claro me diz que é hora do banho da criança que é hora de fechar as janelas por causa dos pernilongos que é hora do jantar que infelizmente não vai dar pra ver a novela mas quem sabe o jornal ou o futebol ou um filme qualquer que seja e de repente o sono chega

Não consigo. A interferência, a interrogação... necessidades desta alma, que, para fluir, precisa desconhecer que um momento é permanência e outro transformação. Esta alma que precisa da certeza de se saber balizada pela linguagem e busca, nas regras da pontuação, uma forma de justificar sua insensatez. Entre as dobras minúsculas do aparato gramatical, a vida segue como um exercício.

     


14 comentários:

  1. Belo exercício de discurso livre e desobediente. Só não gostei mais pq no final me privaste da co-criação a que me tinhas permitido.

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  2. Vai se entender esse inconsciente que não nos permite completamente livres e desobedientes. A verdade é que buscamos amarras. Mas... vá além da co-criação, até onde suas próprias amarras o detiverem...

    Obrigada, Paulo Laurindo!

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  3. Muito bom o seu texto! Eu me vejo um pouco nele. Dentro de mim já me desprendi das letras maiúsculas, pontuação, parágrafos, acentuação, e outras coisas mais. Afinal o mundo em que vivemos não passa de uma ilusão, como se fosse uma peça de teatro preparado para atuarmos (vide Matrix). Se quiser aqui vai o meu blog : "Acordando em um mundo irreal..." : http://jbjorge.blogspot.com.

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  4. muito legal Márcia você tem cacife suficiente para fazer esse tipo de exercício com sucesso mas eu cruz credo jamais me atreveria sou caótica demais para escrever sem pontuação e sem maiúsculas B,E;I-J"O?S.

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  5. Sabe o que mais impressiona? Lendo seu texto, em nenhum momento senti falta de nenhuma vírgula, literalmente falando. Isso é que é escrever bem! Um grande beijo.

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  6. Olá Márcia, é um show o teu blog, adorei! Parabéns! Voltarei aqui.
    Abraço forte.

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  7. Márcia,

    Querida contista, que recurso original e incrível utilizaste neste texto; daria inveja até no intragável Saramago.

    Tuas letras montanhosas são mesmo um alento em nossa atual criação literária; você, moça querida, salva a honra genuína dos textos efêmeros que surgem todos os dias.

    Entretanto, devo alertá-la que muita vez a vírgula é tudo. Saramago e algum outro não sabem disto, mas a vírgula e o ponto são a diferença entre a vida pequena e a vida turva, incisiva e até longa - embora tudo seja vida.

    É sempre uma delícia vir aqui, minha querida. Obrigado!

    Um beijo,

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  8. Nossa! Que coincidência...estava lendo este seu incrível texto e refletindo mesmo até que ponto nos devemos prender em pontos, parágrafos,vírgulas etc, quando recebo um email, avisando sobre o seu comentário no meu blog! Uma está no blog da outra! Muito obrigada pelo seu elogio, que muito me envaidece, vindo de você! Parabéns!
    Beijos,
    Cynthia

    PS>Assim como disse o Ricardo Novais aqui em cima, a vírgula e pontos as vezes são imprescindíveis, como na pequena frase que vou postar aqui:
    "só vendo vendo não vendo não vendo"

    Complicado decifrar o quê seria esta afirmação, né?
    Agora com as vírgulas e pontos:

    "Só vendo, vendo. Não vendo, não vendo."

    Este aviso bem-humorado e inteligente está escrito num botequim aqui no Rio e chama atenção justamente porque os fregueses não entendem, de cara, do que se trata tal advertência, que nada mais é do que: "Não vendo fiado"

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  9. Obrigada,Márcia, pelo comentário no espartilho. Seu ponto de vista é muito importante para mim.

    Beijos e parabéns pelo blog. Adoro flores!

    Maria Maria

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  10. Amo ler os comentários postados. Um primeiro impulso, diria, pode até ser por vaidade. Mas descobri que esta é mínima. A felicidade em ler o que vocês escrevem decorre de saber que, de alguma forma, estamos em sintonia. A linguagem vence as barreiras e aproxima as pessoas; a tecnologia é só ferramenta para ela. Beijos a todos. Obrigada pelo carinho de vocês.

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  11. Uma homenagem, já que, coincidentemente, apareceu citado pelo Ricardo Novais:

    "... todo o dito se destina a ser ouvido. Quero com isso significar que é como narrador oral que me vejo quando escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para serem lidas como para serem ouvidas. Ora, o narrador oral não usa pontuação, fala como se estivesse a compor música e usa os mesmos elementos que o músico: sons e pausas, altos e baixos, uns, breves ou longas, outras."

    (SARAMAGO, Cadernos de Lanzarote, 1997: 223)

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  12. O mago das palavras deixou-me com o coração dilacerado...nesse momento de perda irreparável da nossa literatura... resta-nos consolarmos uns aos outros com excertos e textos mágicos como esse... #SaramagoForever

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  13. Olá Marcia,

    venho agradecer e retribuir a visita que fez ao meu "cantinho", muito obrigada.

    Em relação ao livro, poderei enviar-lhe um exemplar sem problema nenhum pois possuo exemplares comigo e costumo enviar para fora de Portugal.

    Se estiver interessada diga-me como prefere que o faça, se prefere que envie normal e faz transferencia ou se prefere que o envie á cobrança. Deixe-me entao a sua morada se pretender.

    gostei muito deste seu cantinho, voltarei mais vezes.

    beijos

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  14. Amei, adorei e Digo!
    Sem vígula ou pontos, exclamações ou até mesmo, interrogações...
    Ontem mesmo comentava com uma pessoa amiga e quedida que, as vezes tc no msn, muitas das vezes vamos tc e, acabamos não pontuando. Talvez pela intimidade, conhecimento ou até mesmo, pelo simplez fato de não importar, pois ja há entendimento suficiente para saber o que estamos falando uma para o outro no exato momento.
    Mas para algumas pessoas, é determinante vc pontuar corretamente, pois muitas das vezes, ela, a pessoa, interpreta o dito pelo não dito.

    Mais um vez digo!
    Amei a matéria postada

    MARCIO RJ

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