domingo, 20 de março de 2011

Das coisas e dos excessos

  


Converso com uma vizinha, senhora idosa. Mora com a filha médica. Na conversa percebo o orgulho pela profissão valiosa da filha, derramado na exaltação do trabalho em excesso. Percebo também, bem mais que isso, o falar, mineiro, caipira.

Mineiro do interior diz que vai de a pé. Tem gente que não gosta de ouvir. Tem quem zombe e quem queira corrigir. Sou mineira também. Gosto de comer abóbora, angu, quiabo e ora-pro-nobis. Sou mineira também, de pouca fala. Vou escutando aquela senhora assim como escuto a tantas pessoas. Falo pouco, mas gosto dos excessos. Gosto da excentricidade dos conectivos.

Pois deixem que a filha da minha vizinha tenha, como eu, andado muito de a pé quando estudante do grupo escolar, do ginásio, do colégio. A sintaxe da língua do povo, tão música nossa! Abaixo a hipocrisia dos que se julgam mais maestros. Eu tenho aprendido tanto de (com) viver com as pessoas!

A velha senhora me convida a entrar. Um cafezinho. Dispenso. Vou tomá-lo, daqui a pouco, já em minha casa. Gosto dos conectivos. Gosto igualmente da ausência deles. Sua ausência é descobri-los ocultos, no cruzamento de outras paragens. Ando de a pé nesse terreno, desvelando o silêncio resguardado, em cada trilha, nos gestos e nos olhares.

Entro em casa. Antes, retiro, na caixa de correio, o exemplar da revista mensal que assino. Na última página, um poema, As coisas, de Arnaldo Antunes. “As coisas têm peso, massa, volume, tamanho,” etc. Somente vírgulas. Nenhum conectivo. Último verso: “As coisas não têm paz”. Às vezes, pessoas são coisas... A verdade da sabedoria mineira sopra silenciosa em meus ouvidos: a paz está nos conectivos e seu excesso é excesso de paz.

Vou até a cozinha. Fazer um café. Café mineiro de coador de pano, pois é dele que preciso, é dele que gosto. Café de uma mão só, que segura a asa da caneca esmaltada. A outra mão, livre, trabalha apaziguando pensamentos e distribuindo excessos, em vagarosa abstração, imitando a concretude dos passos no compasso das muitas andanças, das conversas e dos silêncios.

10 comentários:

  1. Márcia, essas tantas falas que o povo fala me encantam sempre! Mineiro anda de a pé, baiano espera "duas horas de relógio" e fala que o ônibus "evém"... e corrigi-lo seria qurer cortar parte de sua alma. Deixa eu te dizer que é uma delícia ler seus textos! Gosto muito do seu estilo, há algo neles tão familiar à minha alma... Amei te ler neste domingo que se finda.
    Beijos,

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  2. Os regionalismos, os sotaques, as expressões típicas de cada região, aquelas que denunciam quanto tempo andamos de ônibus, de "busão", de "trem". Pensar nessas coisas é tão bom...
    Tento sempre trabalhar isso com meus alunos. Visite este blog, onde publico as redações deles: blog9redacao.zip.net
    Parabéns, um texto ótimo.

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  3. Belíssima crônica, Márcia. Bravo!

    Nas ausências e no silêncio lhe reverencio, palavra por palavra que entra alma a dentro, com um gole de cafezinho - mineiro, claro!

    Um beijo,
    Ricardo.

    PS.: Mas que coincidência, andou ‘proseando’ por Minas nesta semana que se acabou um tal, herói; teve ofício imperioso nas montanhas de acolá... http://www.o-bule.com/2011/03/juca-brasil-heroi-particular-parte-iii.html

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  4. Conversa de mineiro. Tem coisa melhor? E regada, claro, a café coado no pano. Também não abro mão do coador de pano. Quando estraga, encomendo um novo a minha faxineira, que aqui na Zona Sul do Rio só se encontra de papel ou de nylon.

    Beijos

    P.S.: Diz pra Tania (ela te achou no FB?) que "evém" nós é que doamos pros baianos - e vendemos pros paulistas da beira do Sul de Minas!

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  5. Tuca, achei a Márcia, sim, no FB...mas eu confesso que gosto mesmo é de estar aqui, na casa íntima de cada um, lendo e viajando nas imagens que cada um cria.
    Evém não é nosso? Ah, evém você...rs...é nosso também!
    Beijos,

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  6. Boa prosa, Márcia. Esse "de a pé" é o que faz a gente ver a importância das coisas. Afinal "andar" assim nos torna senhores do tempo, permitindo que cada instante flua em cota de prazer, memória, reflexão, aprendizado... talvez seja exatamente isto que desejamos quando falamos de uma qualidade de vida, uma vida mais integrada com a natureza: prestar atenção às pequenas coisas e delas obter significado que enriqueçam o sentido da vida.

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  7. Marcia,

    gostei muito de ler seu texto. É sabido pela maioria dos meus amigos virtuais que tenho uma paixão (doentia?) pelos excessos coloquiais, e especialmente pelos regionalismos, - esses falares plenos de harmonia, beleza, sedução, que muitas e muitas vezes ouso misturar em escritos poéticos publicados em um de meus blogues. "De a pé" também se pode chegar à alma.

    Bjs, boa semana. Inté!

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  8. Sempre gostei de saber de histórias de pessoas e saber o que pensam acerca do mundo e das coisas e com tudo isso vou equilibrando as coisas e seus excessos.
    Um grande abraço

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  9. sou carioca da gema, embora filho da Clara Silva Barreiro.
    mas adoro os mineiros. tenho mais de cinqüenta: oito no coração, o resto no fígado.
    topo até casar com a cirrose, mas jamais largarei minhas amantes, todas bem-nascidas em tradicionais alambiques mineiros.

    abraço

    PS _ ao contrário do que possa sugerir o meu amor pelas pingas, não tenho qualquer parentesco com o Velho Barreiro.

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