Mas... olhai, oh meus olhos saudosos dos ontens
esse espetáculo encantado da Avenida!
(Mário de Andrade, O Domador)
esse espetáculo encantado da Avenida!
(Mário de Andrade, O Domador)
Juro que tentei escrever alguma coisa interessante, mas esta chuva que não dá trégua roubou-me toda a inspiração, lavou-me a facilidade de expressão. Sou movida a sol. Ademais, não sei falar de carnaval. Sei carnavalizar, viver o samba na carne.
É bem provável que o título com que nomeei a minha crônica tenha soado estranho. Em minha brincadeira linguística transformei o “não” em prefixo. Este é, entretanto, processo comum em Língua Portuguesa. Claro, a gramática não cita. Assim como não aborda a ocorrência desse advérbio de negação após o verbo. No entanto, a musiquinha que tem marcado o carnaval deste ano diz “quero não, posso não”.
Não é minha matéria, todavia, a estranheza do processo de formação da palavra, e sim seu significado. Trago aqui os sons e as cores do que não estou a viver. “Ensaiei meu samba o ano inteiro, comprei surdo e tamborim.” Hoje, na passarela, o som da chuva nada tem de parecido com a sonhada alegria. Sem pretensão ao recolhimento, mas o que fazer de um feriado de carnaval em que só chove? Principalmente quando a idade já não transforma cinza em azul? Desfiz-me dos arranjos. Tentei adiantar o calendário, trazer a quarta-feira para dentro do sábado. Frustrei-me.
“Gastei tudo em fantasia, era só o que eu queria.” O luxo dourado, nas unhas, na maquiagem, no vestido, ficou feito saudade trancada no peito. O sol ausente desfavoreceu a boa colheita. Imensos campos de trigo cobertos de um escuro pálido e vil. Agora tudo é apenas insanidade pagã. “Traje de losangos... cinza e ouro...” É possível um carnaval sem brilho? Algo que, ainda assim, receba o adjetivo “arlequinal”?
É por isso que me condenei à escrita, mesmo desprovida das lantejoulas e dos confetes. Escrevo o que vivo. O que não vivo também escrevo. Difícil!
Constato, no frio da chuva constante, que me sobra nova atividade: costurar. “Em retalhos de cetim, eu dormi o ano inteiro.” Vou lá, recolho das minhas horas de sono o alento. Emendo-os no ofício. Um poeta que é trezentos, trezentos-e-cincoenta e uma canção que, não sei por quê, ficou na memória servem de agulha e linha a unir os fragmentos – nada é palavra minha afinal... A chuva tomou-me todos os adereços.
O Carnaval está em nós, e, neste caso, em teu texto. Brilhante!
ResponderExcluirBeijo.
Ontem li que nesta época do ano só existem duas possibilidades: folia ou retiro. E vem você e nos mostra uma terceira, esta sim, irrestrita.
ResponderExcluirAdorei seu blog. Fico por aqui. Beijos. LuGoyaZ. Visite-me.
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