Um vidro. É o que separa a vida que vai aqui dentro da vida que vai ali fora. Fecho o livro que leio, história de um mundo diferente que não se recria em mim, mas somente ali, do outro lado da janela. Levanto-me. Prendo a cortina. Constato sem entusiasmo que o céu é azul. Como talvez nunca fora. Essa constatação faz doer ainda mais o pequenino trapo de coração.
O céu é muito mais azul que os olhos teus. Resolvo que preciso ouvir uma música. Um tango que seja. Um samba-canção... E a voz de Ney Matogrosso toma conta do ambiente: Se outro amor em meu quarto bater eu não vou atender*
Muito mais que um vidro é o que separa a vida que vai aqui dentro da vida que vai ali fora. A história que criei, que não é para ser lida. A história que começa no exato momento em que teus olhos se fecharam. Porque a história de antes, esta trazia a tua assinatura também. O céu lá fora não devia ser azul. Nunca mais.
Um dia o céu e tua alegria eram uma só carne. E minha mão fazia movimentos no ar, flanava... buscando, pelo tato, reter o que a visão transformava em cor. Um dia a música era outra. E nela os reflexos do sol descortinavam qualquer sombra atrás da vidraça.
Houve um momento, porém, que a ti não bastou a solidez dos móveis. Amanheceste cismando com a fluidez da decoração. Tua alegria deixou de ser carne. Minha mão desconheceu o ar.
Sei. Eu não devia ser tão triste. Mas a janela... na verdade ali está o mistério que me imobiliza. Esse vidro, inevitável! Por que o céu insiste em continuar azul do outro lado?
(*) De cigarro em cigarro, composição de Luiz Bonfá, gravada por Nora Ney (1953). Regravação de Ney Matogrosso (“Beijo bandido”, 2009).
Oi, Márcia.
ResponderExcluirAh, não espanta leitor algum, não. Pelo contrário, até leitores do além-túmulo apreciam certas leituras, hehehe.
Entretanto, este teu texto é bem mais refinado que o meu conto bizarro. Esta tua história remete às reflexões mais bonitas da alma; já aquele Pedro e Paulo lá do blog são como dois irmãos que surgem em manchetes de jornais sensacionalistas e nenhum julgador quer entender por que cometeram tamanha monstruosidade.
Tenho que rezar o terço do rosário todo agora, é que peguei gosto assassino de matar torpemente meus personagens débeis; hahaha.
Um beijo, minha querida.
Ô Márcia... sei não... vou repetir chavão: pequeno frasco, grande perfume. E não é influência da Lydia Davis não, que aliás descobrir neste último número da Revista Piauí, com alguns dos seus contos escolhidos, mas é a semelhança de sentimentos me fez pensar o quão pequeno é este mundo, talvez o que nos separe seja mesmo uma vidraça.
ResponderExcluirNó, ocê tá ficando é especialista em céu, sô!
ResponderExcluirMuito bonito, Márcia. Me lembtou a belíssima "Canção da manhã feliz", de Hatoldo Barbosa e Luis Reis:
"Luminosa manhã
Prá que tanta luz
Dá-me um pouco de céu
Mas não tanto azul...
Lembrou-me também uma tirada do grande Custódio Mesquita. Ele não gostava (nem eu!) de terminar uma noitada boêmia dando de cara com o sol. Se via o céu ameaçando clareat, dizia, irritado:
"Lá vem aquele idiota outra vez!"
Beijos
Prosa sólida, convincente, mas a deixar no ar a vontade de uma pequena provocação:
ResponderExcluir- Porque não ousar ir para lá da janela?
Beijo :)
oi,.. cheguei pasejando no mundo dos blogs y parei pra te leer y encontrei muito sentir en tu blog.. te felicito parabems
ResponderExcluirpermiso pra le seguir y convidala pra me visitar no meu blog... obrigado
Saludos
abracos
Otima semana