terça-feira, 10 de agosto de 2010

Samba-canção


Um vidro. É o que separa a vida que vai aqui dentro da vida que vai ali fora. Fecho o livro que leio, história de um mundo diferente que não se recria em mim, mas somente ali, do outro lado da janela. Levanto-me. Prendo a cortina. Constato sem entusiasmo que o céu é azul. Como talvez nunca fora. Essa constatação faz doer ainda mais o pequenino trapo de coração.

O céu é muito mais azul que os olhos teus. Resolvo que preciso ouvir uma música. Um tango que seja. Um samba-canção... E a voz de Ney Matogrosso toma conta do ambiente: Se outro amor em meu quarto bater eu não vou atender* .

Muito mais que um vidro é o que separa a vida que vai aqui dentro da vida que vai ali fora. A história que criei, que não é para ser lida. A história que começa no exato momento em que teus olhos se fecharam. Porque a história de antes, esta trazia a tua assinatura também. O céu lá fora não devia ser azul. Nunca mais.

Um dia o céu e tua alegria eram uma só carne. E minha mão fazia movimentos no ar, flanava... buscando, pelo tato, reter o que a visão transformava em cor. Um dia a música era outra. E nela os reflexos do sol descortinavam qualquer sombra atrás da vidraça.

Houve um momento, porém, que a ti não bastou a solidez dos móveis. Amanheceste cismando com a fluidez da decoração. Tua alegria deixou de ser carne. Minha mão desconheceu o ar.

Sei. Eu não devia ser tão triste. Mas a janela... na verdade ali está o mistério que me imobiliza. Esse vidro, inevitável! Por que o céu insiste em continuar azul do outro lado?



(*) De cigarro em cigarro, composição de Luiz Bonfá, gravada por Nora Ney (1953). Regravação de Ney Matogrosso (“Beijo bandido”, 2009).


5 comentários:

  1. Oi, Márcia.

    Ah, não espanta leitor algum, não. Pelo contrário, até leitores do além-túmulo apreciam certas leituras, hehehe.

    Entretanto, este teu texto é bem mais refinado que o meu conto bizarro. Esta tua história remete às reflexões mais bonitas da alma; já aquele Pedro e Paulo lá do blog são como dois irmãos que surgem em manchetes de jornais sensacionalistas e nenhum julgador quer entender por que cometeram tamanha monstruosidade.

    Tenho que rezar o terço do rosário todo agora, é que peguei gosto assassino de matar torpemente meus personagens débeis; hahaha.

    Um beijo, minha querida.

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  2. Ô Márcia... sei não... vou repetir chavão: pequeno frasco, grande perfume. E não é influência da Lydia Davis não, que aliás descobrir neste último número da Revista Piauí, com alguns dos seus contos escolhidos, mas é a semelhança de sentimentos me fez pensar o quão pequeno é este mundo, talvez o que nos separe seja mesmo uma vidraça.

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  3. Nó, ocê tá ficando é especialista em céu, sô!

    Muito bonito, Márcia. Me lembtou a belíssima "Canção da manhã feliz", de Hatoldo Barbosa e Luis Reis:

    "Luminosa manhã
    Prá que tanta luz
    Dá-me um pouco de céu
    Mas não tanto azul...

    Lembrou-me também uma tirada do grande Custódio Mesquita. Ele não gostava (nem eu!) de terminar uma noitada boêmia dando de cara com o sol. Se via o céu ameaçando clareat, dizia, irritado:
    "Lá vem aquele idiota outra vez!"

    Beijos

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  4. Prosa sólida, convincente, mas a deixar no ar a vontade de uma pequena provocação:
    - Porque não ousar ir para lá da janela?

    Beijo :)

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  5. oi,.. cheguei pasejando no mundo dos blogs y parei pra te leer y encontrei muito sentir en tu blog.. te felicito parabems

    permiso pra le seguir y convidala pra me visitar no meu blog... obrigado

    Saludos
    abracos

    Otima semana

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