segunda-feira, 28 de março de 2011

Como todos os dias


Pois não é que, como todos os dias, o despertador tocou às seis da manhã? E, como todos os dias, tomei o cuidado de pisar o chão com o pé direito ao levantar-me da cama. Segui, quase como sonâmbula, para o banho.

A busca pela temperatura ideal da água (mornitude, mornidez, mornidão?). Como todos os dias, a tentativa da palavra para a minha expressão. Vem daí meu gosto exagerado pelos parênteses, pelos travessões, pelas reticências, que já nem mais causa incômodo ao meu leitor. Mais tarde – fico com a pulga atrás da orelha e o comichão que se instala precisa de sossego – o dicionário resolveu minha inquietude. Pois está lá: mornidão, mornez, mornura. Não me satisfazem. Seleciono tepidez. A água tépida vem prolongar a sensação de cama e lençóis macios.

Pois não é que, apesar do corpo dormente, nu e molhado, os ouvidos insistiram em uma conexão exterior e não deixaram de captar o som do interfone? Com os fios de cabelo densos de xampu, fico dividida entre o pronto atendimento e a impossibilidade da ação. Não consigo simplesmente ignorar o chamado. Chego a ensaiar um processo de aceleração, mas a espuma sinaliza a inutilidade do afobamento. A ausência de um segundo toque parece, a princípio, um alívio.

Minutos depois, estou já à mesa do café. Entre queijos e geleia, pairam algumas interrogações: quem seria àquela hora? o que estaria a querer a visita? apenas mais um indigente? A acusação devedora da consciência. “Bati à tua porta e não abriste.” Vou, como todos os dias, carregar por não sei quantas horas a sensação de culpa. Como daquela vez em que errei o caminho na rodovia e, mesmo o problema resolvido, martelava-me a cabeça a noção de que há erros evitáveis. Como quando, preocupada com a finalização de um trabalho, me esqueci de uma consulta médica. Depois, impingi-me ritos de penitência até a marcação da nova data.

A vida é sempre inexata, sem estrofes isométricas e versos alexandrinos na cadência de cada dia, ainda que levantemos com o pé direito em respeito ao cronômetro que marca o nosso despertar físico. Porque a tepidez da água, em algum momento, se transmutou de salvação para tortura. Não, não foi o calor da água. Tudo são os meus questionamentos, para os quais insuficientes se fazem as superstições e a religião.

Um dia, esquecida de qualquer princípio e despida de qualquer girassol, não me importarão quantos sóis se levantam por entre os horizontes do meu espaço. Se a sonolência se fizer ainda dona do meu instante, atirarei o despertador pela janela. Atenção, distraídos que estejam a tocar o interfone: alguém nessa casa pode, desvencilhando-se das amarras do tempo, descobrir-se livre, sem colocar um aviso na porta...
   

11 comentários:

  1. belo texto...belas palavras...belo léxico...bela lição...a beleza da liberdade...AMEI!!!

    ResponderExcluir
  2. a palavra exata para definir um banho tépido é mornimim.

    também não sou místico, mas rezo para que atires mesmo o despertador pela janela. minha única fé é: ele há-de acertar a moleira da mulher do telemarketing que hoje, como em muitos outros dias aziagos, me acordou às 9 da madrugada.

    bjs

    ResponderExcluir
  3. Você está beirando a iluminação, Márcia! Fazer de um movimento rotineiro uma poesia tão plena se significados não é prá qualquer um não.

    ResponderExcluir
  4. Delícia de crÕnica sempre, Màrcia. O tempo é curto, mas passo e leio, sabendo de antemão que vou gostar, e leio, e gosto muito.
    Beijos,

    ResponderExcluir
  5. "A vida é sempre inexata, sem estrofes isométricas e versos alexandrinos na cadência de cada dia, ainda que levantemos com o pé direito em respeito ao cronômetro que marca o nosso despertar físico."

    Cuidado, Márcia! Este é um dos vários trechos especialíssimos do seu texto e, pela funcionalidade independente do todo, corre, como os demais, o risco de ser postado em algum ou vários blog como sendo da Clarice, do Caio Abreu ou de outro autor da moda. Essa prática abominável já virou rotina na net.

    Até já prometi pra mim mesmo: se algum texto do DS (meu ou dos outros três parceiros), aparecer assim em outro blog, vou começar a espalhar ciatações fraudulentas por aí. Do tipo: texto do Guevara assinado pelo Bolsonaro, ou do Bocage assinado pelo Papa.

    Beijos

    ResponderExcluir
  6. Patrícia, obrigada pelo comentário aqui e no FB também. Aliás, lá, o comentário da Giu "até me arrepiou". Beijos

    Wilden, telemarketing nem merece despertador. Atiremos o Big Ben de uma vez!

    A iluminação é só por conta do sobrenome, Paulo. No mais, os insights dão um grande trabalho para se concretizarem em texto. Um grande abraço, meu amigo.

    Oi, Tânia
    Sua visita é sempre bem-vinda! E o tempo é realmente nosso vilão (fala de um grande amigo meu). Um abraço.

    ResponderExcluir
  7. Olá, Taio e Nel

    Novos visitantes.
    Sejam bem-vindos.

    Tentei entender seu comentário Taio, mas foi em vão.

    Nelson, já aproveitei para conhecer seu espaço. Muito bom mesmo! Gostei!

    ResponderExcluir
  8. Ai, Tuca, que isso não aconteça!

    Mas, se acontecer, vou seguir seu conselho de vingança. Até porque adorei essa ideia de imaginar Joseph Ratzinger declamando
    "Tendo o terrível Bonaparte à vista,
    Novo Aníbal, que esfalfa a voz da Fama
    "Ó capados heróis!" (aos seus exclama
    Purpúreo fanfarrão, papal sacrista)..."

    Beijos

    ResponderExcluir
  9. Cara Márcia Luz... bom dia !
    Estou revendo (ou seria relendo??!!!... como você, adoro reticências, parêntesis...) seu blog.
    O comentário do Sr. Tuca Zamagna é cirúrgico como um bisturi de um cirurgião-especialista:

    "A vida é sempre inexata, sem estrofes isométricas e versos alexandrinos na cadência de cada dia, ainda que levantemos com o pé direito em respeito ao cronômetro que marca o nosso despertar físico.
    Cuidado, Márcia! Este é um dos vários trechos especialíssimos do seu texto e, pela funcionalidade independente do todo, corre, como os demais, o risco de ser postado em algum ou vários blog como sendo da Clarice, do Caio Abreu ou de outro autor da moda."

    Quando eu li o texto (texto não... isso é crônica-poema) fiquei enbasbacado pela figura de estilo...
    Ainda não li todos os posts. Parei nesse e, inequivocamente, leio todos os comentários e não posso furtar-me a comentar e ver tua delicadeza na resposta (coisa rara na net...!!).
    Linda a crônica...e como dói nossa consciência, essa cobradora interna que nos obriga a cada dia, ser mais humanos...
    Abraços...
    Marco Aurélio

    ResponderExcluir
  10. Olá, Marco Aurélio

    É bom ouvi-lo dizer que lê todos os comentários. Justamente por eles é que criei um blog. Considero muito significativo esse papel do leitor-autor. Talvez porque, acontecendo em um ambiente supostamente inovador, o fato remeta às produções coletivas na narrativa oral (antes da supervalorização do autor), talvez porque remeta aos antigos hábitos da instalação de academias, tão deturpado posteriormente, talvez ainda porque destaque o caráter aberto de tudo aquilo que se produz em arte e ciência, num eterno diálogo.

    Quanto à delicadeza aprendi com o Tuca, sempre tão atencioso, mas, infelizmente, ainda, ela fica condicionada ao tempo.

    Beijos, meu novo amigo.

    ResponderExcluir